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terça-feira, 6 de dezembro de 2016

A propósito de uma notícia sobre Luciana Abreu

À MODA ANTIGA VS WEB 2.0
São verdadeiramente um fenómeno dos novos tempos: os comentários às notícias.
Quando as notícias eram transmitidas apenas pelos jornais (em papel), pela televisão e pela rádio, os recetores - todos nós - eram elementos passivos do processo de comunicação. Ouvíamos, líamos ou víamos um conjunto de notícias selecionadas pelos referidos meios de comunicação, mas não tínhamos qualquer papel ativo em termos de resposta às mesmas. Ou melhor, os comentários que fazíamos eram privados - falando sozinhos - ou, noutros casos, em família ou pequenos grupos de amigos. 
Atualmente, a web 2.0 permite que o recetor seja também emissor, logo pode responder e dar a conhecer os seus comentários a um universo bastante alargado de pessoas: os próprios meios de comunicação e todos os outros recetores. E é sobre este fenómeno que me quero debruçar hoje: os comentários às notícias online.

ADORO COMENTAR
Com a possibilidade de comentarmos as notícias todos aprendemos coisas novas e ainda nos são oferecidas novas funcionalidades, isto é, as notícias deixam de ser apenas informativas para passarem a ter - em potência - uma finalidade lúdica, de entretenimento e, devo acrescentar, de comédia da boa, mesmo boa!

MOTVOS SÉRIOS
Primeiro as coisas sérias: se a uma notícia um leitor comenta acrescentando detalhes importantes, saímos a ganhar em informação e conhecimento - sim, isto acontece. 

MOTIVOS MAIS OU MENOS SÉRIOS
Em segundo lugar, as coisas mais ou menos sérias: se um leitor comenta uma notícia desabafando experiências pessoais, ganhamos consciência de que não estamos sozinhos no mundo, sentimo-nos amparados e reconfortados pela identificação com outros elementos da comunidade.

MOTIVOS EXTREMAMENTE SÉRIOS
Por fim, as coisas mesmo - mas mesmo muito - sérias: em muitos casos, os leitores aproveitam os comentários para se insultarem uns aos outros, seja a propósito da opinião que têm sobre a notícia, seja, nos casos mais apurados de estupidez, apenas porque sim. Assim, os leitores como eu - que reservam a opinião para posts no Face ou textos no blogue, nunca usando a possibilidade de comentar as notícias no site onde ela é publicada - ganham uma atividade extra e imensamente enriquecedora: admirar a extensão da estupidez humana ou, verdade seja dita, admirar a extrema inteligência de alguns comentadores (aqui sem ironia). 

É mesmo muito divertido passar alguns minutos a ler os comentários que as pessoas fazem às notícias e aos comentários dos outros. Mas como isto se entende melhor a partir de exemplos, passo a descrever a notícia (e respetivos comentários) que motivou este texto: Luciana Abreu e sua mãe.

A NOTÍCIA SOBRE A MÃE DE LUCIANA ABREU
Hoje de manhã, como sempre faço, li as gordas de um ou dois jornais diários. Li a notícia completa em 4 ou 5 casos. E em apenas um, li também os comentários à notícia. 
Pela pertinência do assunto, não pude deixar de ler, na íntegra, a notícia que dá conta dos motivos que levaram a mãe de Luciana Abreu a sair de casa da filha. Passo a explicar: a senhora não saiu porque quis, mas porque foi convidada, pela filha, a fazê-lo. E isso faz toda a diferença! (Mais uma vez, sem ironia.) Sinceramente: não é igual decidir sair ou ser convidada a sair. Esta controvérsia é, de facto, pertinente; embora a considere relevante para o universo familiar onde se insere, é de importância zero para o universo das notícias nacionais. Outra vez: claro que é importante esclarecer por que motivos a senhora saiu de casa da filha - para a família mais próxima, com certeza; mas completamente ridículo que isso seja motivo para uma notícia num diário nacional!! De qualquer forma, isto não é nem raro, nem surpreendente: já estamos habituados a este fenómeno.

OS COMENTÁRIOS À NOTIÍCIA
O que pretendo realmente comentar aqui são os comentários à notícia. Coincidentemente, o primeiro comentário à notícia, ganha, a meu ver, o primeiro lugar no pódio dos comentários. O senhor X comentou a notícia apresentando, detalhada e demoradamente a receita completa de polvo à lagareiro. Aí está, tal como eu dizia - sem ironia - a prova de que alguns comentadores são muito inteligentes  e os seus comentários importantes para o alargar do conhecimento dos leitores. 

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Uma história real!

Entrou primeiro o avô. Estava zangado com a neta que o seguia, mas ao longe, atrás da mãe e da avó. Depois entrou também a tia-avó da criança. Eram talvez umas 4 da tarde e tinham ido buscar a menina, talvez com uns 4 anos, à escolinha. Entraram ali, provavelmente num gesto habitual, para lanchar. O pão quente onde estávamos tem muita oferta para um lanche delicioso. Enquanto eu bebi o meu chá de limão - a constipação está em força -, eles sentaram-se numa mesa de quatro, embora fossem cinco. A tia-avó tinha ido à casa de banho e a menina estava sentada ao lado da mãe. O avô continuava zangado: "Não quero conversa contigo! Então eu sou algum monstro para me fugires?" E ela, em jeito de resposta, pôs as duas mãos a tapar os ouvidos e olhou para outro lado. Não há dúvida que a mensagem estava a passar. "Que mal educada" continuava o avô. Quando a menina da confeitaria os foi atender, a criança levantou-se para escolher o que queria lanchar na montra. A mãe acompanhou-a. Entretanto, a avó, fosse por que razão fosse, decidiu sentar-se na cadeira onde tinha estado até ali a pequena. Ao voltar, do alto dos seus 4 anos, disse "Esse lugar é meu!" e continuou "Era eu que estava aí". Para ajudar a passar a mensagem, ia empurrando a avó que só lhe respondia "Senta-te nessa!", ao que a pequena respondia "Sai! Aí sou seu!". A mãe da criança, senhora de vinte e tal anos, de uma educação peculiar, disse: "Ela tem razão, mãe. Era ela que estava aí. Não tinhas nada de te sentar aí. Era o lugar dela." A avó, encurralada entre os empurrões da neta e os reparos da filha, levantou-se e mudou de lugar, devolvendo a cadeira à pequena. Entretanto, a tia-avó, mais nova do que os avós, regressa da casa de banho e arranja uma cadeira numa mesa vizinha, arrastando-a ruidosamente, levando de arrasto uma outra cadeira da mesa ao lado, onde o cliente havia pousado uns óculos e a carteira que quase pararam no chão.
Finalmente, chegaram os pedidos e a menina - de 4 anos, relembro - observou cuidadosamente o seu lanche: uma Coca-Cola e uma Bola de Berlim. Todos lancharam qualquer coisa e sempre que os avós falavam, a criatura tapava os ouvidos. Bebendo a sua Coca-Cola e comendo a sua Bola de Berlim em pequenas garfadas que a tia-avó lhe ia dando, continuava a espalhar charme quando, ao passar, um senhor lhe fez um sorriso e disse: "Que linda!", ao que respondeu com o já habitual gesto de mãos a tapar os ouvidos. O avô, depois de lanchar rapidamente, disse que queria ir embora, levantou-se, foi pagar e informou que esperaria lá fora. A conversa continuou de qualidade elevada. Dizia a avó "Despacha-te a comer, rapariga, o avô está doente e quer ir embora." Ao que a criança, adivinhem!!, respondeu tapando os ouvidos. E então a avó, insistiu, variando "A comer bolos... Só dais merda à criança... Foda-se!" E pronto, a mãe da criança não tapava os ouvidos, mas a atitude não diferia muita da da pequena. A avó, ainda mais indignada, continuava a reforçar: "Despacha a miúda, o teu pai está doente", "Já vai, mãe, foda-se, já ouvi...". A avó levantou-se, e resolveu esperar com o marido lá fora. A tia-avó, perpetuamente silenciosa, continuava a alimentar a Bola de Berlim em pequenas garfadas à doce criatura. A mãe levantou-se e, num ataque súbito e estranho de consciência disse "Anda. Ele quer ir embora. Ainda se chateia!" Foi apertando o casaco e a tia-avó, impávida, continuava, garfada atrás de garfada, a insistir em nutrir a menina. Por fim, levantaram-se todas e dirigiram-se à porta, não sem antes a criança dizer: "Quero fazer xixi!" E os casacos voltaram a ser despidos e lá foi, mãe e filha, à casa de banho. Alguns minutos mais tarde, saíram. 
Entretanto, penso que consegui fechar a boca. Queria fazer comentários, mas preferi escrever este texto.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Recomeço

A Eram exatamente 17 horas. A claridade do dia estava a desaparecer e a frescura da noite intensificava os sentidos; era impossível ignorar a passagem do tempo. 
A rua estava deserta apenas porque se situava longe do centro de atividades da cidade, era estreita e parecia encolher a cada segundo que passava. Talvez o local não tenha sido escolhido por obra do acaso. Talvez tenha sido selecionado cuidadosamente para que ninguém os visse. 
O carro tinha abrandado lentamente e parado ali mesmo, onde ela ainda se encontrava. Havia saído do carro, como lhe ordenaram, e permanecia ainda ali, sem encontrar outro caminho, sem procurar outras decisões.
Talvez haja, de facto, momentos na vida em que não se procuram respostas, nem ações, nem decisões; momentos de pausa sem reflexão. Era assim que ela se encontrava: parada e não apenas fisicamente.
Apesar disso, a luz era cada vez menor e todas as outras pessoas continuavam ausentes. Só a órbita terrestre  informava acerca do passar do tempo e contrastava com a quietude de tudo, especialmente dentro de si.
O momento prolongou-se até à escuridão total que, estranhamente, lhe despertou os sentidos. Mexeu os olhos como se os tivesse acabado de abrir e enxergou apenas uma alma: a sua - redescoberta no silêncio que a envolveu aqueles minutos (horas?) que permanecera ali, assim.
O carro que a tinha deixado ali levara os companheiros das horas más, os parceiros das escolhas malignas que havia feito no passado. Olhou para o fundo da rua, como se o carro pudesse estar ainda a desaparecer e decidiu, por fim, avançar. Decidiu que os dias de abandono em substâncias que a retiravam da realidade só lhe traziam uma outra realidade: muito pior do que à que ela tentava escapar. Era cedo. E ainda havia tempo. Violada no corpo e na alma acordou. Pensava que poderia não ter passado por tudo aquilo, que preferia não ter passado por nada daquilo (nem os momentos de indescritível e efémero prazer), porque nada era maior do que a perda da alma. Desrespeitada e quebrada. 
Tinha 17 anos. Estava sozinha. 
Decidiu recomeçar.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Novo look

Hoje apeteceu-me mudar de visual.
Gostam?

Os textos seguem dentro de momentos.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Decisões e certezas (I)

Duas das grandes e maiores decisões da minha vida foram tomadas sem certezas absolutas, ou pelo menos, sem o grau de certeza que vi em outras pessoas perante as mesmas situações. Correndo o risco de me considerarem uma aberração, disparo: ser professora e ser mãe. E agora, se me permitem, explico-me e justifico-me. 
Tomei a decisão de ser mãe já depois dos 25 anos, até lá a maternidade não fazia propriamente parte dos meus planos, nem achava que tal condição teria de existir na minha vida para que me sentisse completa ou realizada. Aliás, lembro-me de ter uns 15 ou 16 anos e de, à mesa, em família, ter afirmado que talvez não quisesse vir a ser mãe. Não recordo a reação da minha mãe se é que houve alguma; mas a do meu pai... De tão incisiva e assertiva nunca me esqueci dela. A minha afirmação causou-lhe tamanha indignação que me surpreendeu. Claro que, naquela idade, o efeito foi precisamente o contrário, isto é, o meu pai proibiu-me, praticamente, de repetir tamanho disparate e isso só me deu vontade de o repetir vezes sem conta. Na verdade, eu nem sequer disse que não queria ser mãe, só admiti essa possibilidade, mas a reação dele fez-me pensar que essa minha decisão parecia, naquele momento, muito pouco minha. Quando ouço mulheres indignadas por lhes ser constantemente perguntado quando chegam os rebentos, como se de uma obrigação se tratasse, desconfio que sentem o mesmo que eu senti aos 15 anos naquela mesa de jantar. 
O meu pai ainda era caloiro na condição de pai de uma teenager, caso contrário saberia que os adolescentes pensam que já sabem tudo e que quanto mais controverso o tema mais apetecível se torna. A minha mãe, professora, conhecia-me um pouco melhor. Além disso, penso que o meu pai até deveria ter ficado feliz com aquela minha afirmação; afinal, qual pai de adolescente não ficará feliz em saber que a filha não quer ser mãe??
Passou talvez uma década até que a ideia da maternidade começasse a ganhar alguma forma, e passasse de uma probabilidade a um desejo. Confesso, porém, que o desejo se revestia de imensas dúvidas e perguntas. Eu não tinha a certeza absoluta de que gostaria de ser mãe, ou pior, se estaria à altura do cargo! O meu modelo tinha sido o melhor de todos, tão bom que me criara esta capacidade de equacionar, refletir, pensar e tomar decisões em consciência. Aos 29 decidi e, felizmente, aconteceu: engravidei. 
As afamadas maravilhas da maternidade darão muitos outros textos, mas no de hoje cabe apenas dizer que o momento em que a Mafalda se deitou no lado de fora do meu ventre, naquele segundo em que os nossos olhares se cruzaram pela primeira vez, eu tive a certeza de que aquele seria o meu papel principal nesta vida. Curiosamente, e isto é rigorosamente a verdade, a enfermeira que puxou a minha filha para o mundo, e com quem eu tinha desenvolvido uma relação bastante divertida nas últimas 3 ou 4 horas, deixou, premonitoriamente, de me chamar Filomena e passou a chamar-me Mafalda. Naquele momento, a Filomena tinha, de facto, desaparecido, ou pelo menos nunca mais seria a mesma.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Como aprendi a ser equilibrada

A história que vos vou contar passou-se, provavelmente, quando eu tinha 7 anos. Há momentos que não são fáceis de assinalar com precisão no tempo, por fazerem parte da amálgama de memórias que ficam algures entre os 4 e os 9 anos. Depois dessa idade, começa a ser mais fácil organizar os separadores das memórias, mas até então, as recordações são como um conjunto de folhas soltas e desorganizadas em cima de uma secretária. Do topo dessa secretária, hoje retiro uma das folhas.
Em todas as minhas memórias de infância há um denominador comum que não posso nunca obliterar: o meu irmão - chegado a casa quando eu tinha apenas 13 meses, não me lembro sequer de um dia da minha vida sem ele. O meu pai e a minha mãe educaram-nos de forma igual, embora os resultados, pelo menos os aparentes, sejam bem diferentes. 
Eu era a tagarela dentro e fora de casa, uma simpatia. Ele era o tímido, o sossegado, mas apenas fora de casa. Por isso, na prática, em casa éramos os dois uns fala-baratos que não deixávamos espaço para o silêncio reinar. 
Fora de casa, a educação que recebíamos obrigava-nos a uma maior contenção. Embora eu fosse mais extrovertida do que ele, ambos primávamos pelo bom comportamento em qualquer situação, mais ou menos formal. Esse comportamento modelar foi resultado de castigos bem aplicados, palmadas no sítio e momentos certos, e de muitos olhares. Os olhares da minha mãe - como de muitas, eu sei - era o suficiente, na maior parte das vezes. 
Um dia, porém, por causa de alguma situação em que a nossa contenção se terá confundido com tacanhez e falta de capacidade de desenrasque, a minha mãe dissertou acerca da necessidade de sermos mais despachados. 
- Que atadinhos! Têm que se safar! - ainda me lembro de a ouvir dizer.
Aquilo reverberou em mim durante uns tempos. Eu não queria nada ser uma atadinha!
Pouco tempo depois, numa consulta médica em que estávamos todos presentes, enquanto os meus pais conversavam com o senhor doutor, eu achei por bem pôr em prática a minha nova faceta de ser uma menina despachada. Não sei muito bem as interpretações intelectuais que terei feito na altura desta dicotomia atada / despachada, mas lembro-me de deliberadamente começar a mexer em tudo quanto era material na secretária do médico. Levantei alguns papéis, mexi num objeto ou noutro, inspecionei algum material que por ali estava espalhado: enfim, estava a ser exatamente o contrário do que seria uma atadinha!
Penso que o médico terá olhado para mim, mas isso pouco me importou. O pior foi quando cruzei o olhar com o da minha mãe. 
Ali, numa pequena fração de segundo, percebi com a maior facilidade o significado de "nem 8 nem 80". 
E foi assim que aprendi a ser equilibrada. Sim?

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Memória e memórias

Há momentos que não ficam na memória, ficam só no coração. Mas há momentos que deviam ficar registados para sempre, porque tu és única e nunca te poderei comparar a nada a não ser a ti própria. Desde o dia em que nasceste que sinto esta necessidade de perpetuar tudo o que tu és, porque tenho medo que um dia nem tu possas saber aquilo que um dia foste. Sei que é assim: impossível guardarmos na memória aquilo que fica só no coração. Impossível passar a nossa memória para um disco externo que grave tudo aquilo que vemos, e ainda mais o que sentimos. Por isso escrevo, e sempre escrevi para te dar a conhecer todos os momentos que estão aqui no coração. É um trabalho sem fim, és uma fonte inesgotável de matéria prima, e todas as palavras que existem no mundo são claramente insuficientes para te descrever, para te identificar, para te amar. Mas eu tento. Continuo e insisto, porque me ajudas, porque cada sorriso teu que eu colho me impele a escrever.
A começar que seja pelo mais simples: e fácil é dizer-te que a chegada da tua primeira década se caracterizou por uma série de acontecimentos que se tornarão possivelmente marcos da história. Ou não. Mas foram, ainda assim, marcantes em cada um de nós que os vive ainda com intensidade. E é daqui, dos teus 10 anos, que te mostro aquilo que nunca deixarás de ser, mesmo que um dia não te consigas lembrar.
O início de 2016 foi dominado pelas eleições presidenciais em Portugal e estas não foram iguais a todas as outras. Nestas tu sabias de cor os nomes de todos os candidatos presidenciais e, embora eu não tenha feito questão de mostrar grandes favoritismos, tu assumiste clara e independentemente o apoio ao candidato Marcelo Rebelo de Sousa. O mais mediático, é certo, mas também aquele que, por vários motivos que fizeste sempre questão de enumerar, te atraiu particularmente. Gostavas do sorriso e da simpatia, da disponibilidade e da seriedade. E dos outros tinhas também o que dizer, mais do que só o próprio nome. 
Em 2016, o teu candidato tornou-se o presidente do teu país, insistes em querer conhecê-lo, e sei que isso acabará indubitavelmente por acontecer. Quero que não te esqueças disto, que as tuas primeiras opiniões políticas - é o que isto é - aconteceram ao chegares aos 10 anos, e há perguntas que fazes que eu tento responder, sempre de forma séria, porque me mereces respeito, mas principalmente porque isso falta à geração que encabeças.
Este ano, o engenheiro Guterres foi nomeado Secretário-Geral da ONU. 
Este ano, estão 30 graus em outubro, e tu vives uma experiência académica nova. A tua professora de português do 5º ano foi a minha professora de inglês do 5º ano. A primeira avaliação que tiveste foi dela: a apresentação oral de um livro que leste, gostaste e recomendas. Surpreendeste, porque és capaz do melhor quando te apaixonas. Excelente. 
A semana passada limpaste uma lágrima quando soubeste que alguém te considera a sua melhor amiga. 
Ontem à noite disseste que me adoras, como o fazes tantas vezes. E eu não esqueço nenhuma.

E as memórias não param, mas aqui ficarão para sempre.

Continua...

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

História de uma bota esquecida

Nasci num grande armazém, felizmente num país de grande tradição na indústria do calçado e, por isso, fui muito bem feita. Aos acabamentos foi dado o mesmo nível de atenção e cuidado do que à base e esqueleto, por assim dizer. Sou feita da melhor pele, com as melhores colas e tenho a sorte de ser cosida em grande parte do meu corpo, o que me dá uma segurança enorme.
Quando fiquei, finalmente, pronta encontrei o amor da minha vida, ou, por outras palavras, o meu par. Era belíssimo, um espelho perfeito de mim de todos os pontos de vista e perspetivas. Não havia par melhor no mundo: felizes, abraçado em concha, iniciámos a vida numa caixa devidamente forrada muito confortável. Como se quer, passamos os primeiros dias da nossa existência assim, protegidos do mundo num sono ligeiramente embalado. 
Não foi de admirar que nos tenham escolhido, chegados que éramos à loja, para habitarmos a montra mais bem decorada de todo o centro comercial. A etiqueta que nos apresentava refletia e anunciava, sem sombra de dúvidas, toda a nossa qualidade. Ali estivemos talvez umas duas semanas, exibindo costuras e recortes. Até o dia em que as conversas se centraram em nós. Havia só um, éramos par único. 
Mantivemo-nos unidos até na hora de nos experimentarem: o par ficava-lhe mesmo bem. E os sorrisos que vinham lá de cima eram mesmo o reflexo de toda a nossa beleza. Fomos comprados! E viajámos. Voltámos à caixa apenas por breves instantes, pois, nessa noite, começou o nosso trabalho. Nos pés dela éramos a estrela da noite. 
Porém, parece verdade que os maiores têm sempre os piores destinos e o meu não poderia ser pior. A festa prolongou-se até tarde. Penso que havia até já alguns raios de luz quando voltámos ao carro, desejando já o descanso merecido. Tinha sido uma noite gloriosa - até ali -, tínhamos sido centro das atenções e alvo dos maiores e melhores elogios. E ainda bem, porque seriam os únicos e finais. Repousámos um pouco no carro, ainda nos pés, e havia sono e cansaço à mistura. 
Foi então que do iminente sono fomos levados para o tumulto geral e incompreensível. Umas luzes demasiado próximas, sons agudos e sons mais graves, o metal a ceder, e a tontura da queda. Um acidente: um tumulto final. A ambulância e o choro, a rapidez na urgência das ações e o fim.
Largada na beira da estrada: uma valeta central sem hipótese de salvamento. Arrancada até do amor da minha vida que, na confusão, saltou o separador central e aterrou, abandonado, na faixa contrária.
Aqui estou desde então, uns seis meses terão talvez passado: não vivo nem corro. Exibo-me sozinha a todas as horas do dia, perdida sem saber o que me acontecerá. Nada. O vazio, a solidão, a inutilidade. Apenas uma bota na berma da estrada.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Sobre a hombridade...

Ainda que este título me faça, desde logo, perder uma série de leitores, arrisco usá-lo pela extrema importância de que se reveste. A hombridade enquanto sinónimo da nobreza de carácter é uma qualidade que se torna cada vez mais urgente nas sociedades atuais.
Sabendo, à partida, que a falta de hombridade não será, com toda a certeza, um problema exclusivo dos nossos dias, parece-me que vai falhando mais onde é mais necessária. Embora o pensamento utópico me seja particularmente caro, aspirar a uma sociedade coberta de hombridade não é, nem de longe nem de perto, um objetivo a atingir, pelo menos em termos absolutos. Contudo, mais uma vez, fico a pensar que cada um se deveria preocupar um pouco mais com o seu papel na sociedade e deixar as desculpas que nos motivam a falhar para trás das costas.
A verdade é que os cargos com mais visibilidade na sociedade, onde necessariamente me incluo, têm algumas responsabilidades acrescidas quanto ao exemplo que dão aos outros. São exemplo todas as profissões que lidem com públicos consideráveis, onde destaco, claro está, os políticos, mas também os médicos, os artistas e os profissionais da comunicação social.
A hombridade pode ser ensinada, principalmente pelo exemplo. E o mesmo acontece, ainda com mais vigor, com o seu oposto. E esse é, por isso mesmo, um dos grandes problemas dos nossos tempos, onde tudo - bom e mau - é muito mais visível. É difícil operacionalizar boas práticas e exemplos, quando somos constantemente confrontados com as vantagens (moralmente duvidosas) do seu contrário. 
A nobreza de carácter, como tantas outras qualidades importantes do ser humano, está em crise, mas não desapareceu. Existe, deve ser promovida e praticada sem sentirmos que, de algum modo, nos estamos a tornar em lorpas. Não esquecendo, todavia, que a hombridade engloba a possibilidade de falhar, de cair, de aprender com os erros, mas acima de tudo, a capacidade de caminhar de cabeça erguida.
Hoje, apeteceu-me pensar nisto.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Segunda-feira

E se, de repente, tudo acontecesse à segunda-feira? Marque na agenda!
Este é o melhor dia da semana: o dia dos recomeços, das vontades renovadas, da concretização dos planos e sonhos.

Hoje queria só dizer que é maravilhoso abraçar quem amamos.

Hoje é o dia certo para mim.
Será o dia certo para si? 


quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Brincadeira de mau gosto

Existe, pelos vistos, uma aplicação que permite agendarmos partidas telefónicas a amigos. Baixamos a aplicação e depois é só escolher o tipo de partida que queremos pregar a alguém: pode ser dizer que essa pessoa será alvo de uma penhora por ilícitos fiscais, acusá-lo de ter de pagar os estragos por ter batido num carro, dizer que o seu cão é irritante e vai ser abatido, entre outros tópicos tão imensamente (não) engraçados. Exploram o assunto da forma mais séria possível, fazem todas as acusações possíveis e imaginárias, insultam e depois desligam (não sem antes fazerem publicidade ao maravilhosos serviço).
O fundo comercial é este: a aplicação é grátis e as primeiras seis partidas também. Depois, pode adquirir pacotes de partidas por um determinado preço. E é legal. Pelos vistos.

Eu até me considero uma pessoa com bom humor, mas provocar mau estar nos outros nunca foi um dos meus objetivos de vida, nem a brincar. Se já provoquei dissabores em outros, garanto que nunca foi com intenção sádica de obter prazer no sofrimento dos outros.
Talvez eu esteja a exagerar, talvez seja eu que não tenho sentido de humor (já mo disseram, embora eu ache mesmo muito estranho - sempre pensei que tinha), mas estas brincadeiras são mesmo de muito mau gosto. Principalmente por permitirem que quem decide pregar a partida mantenha o anonimato. É que nestas brincadeiras, parece-me, a piada pode até estar na revelação final de quem está a brincar contigo e te conseguiu enganar. Talvez aí eu achasse alguma piada. Assim, de forma covarde, não.
Já agora, costumo ouvir e gostar das chamadas telefónicas do Nilton. É igual? Não. Ele, no final, revela a verdade e aguenta-se à bronca.
O meu "amigo" não teve tomates. É pena.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

A prova de amor

Justina sentou-se ao lado do filho, embora todas as atenções se dirigissem para o neto. Olhava-o intensamente e lembrava-se de quando tinha sido mãe, há 33 anos. Há qualquer coisa no olhar de um bebé que consegue apagar todas as dores: mesmo aquela que a dominava quando ela havia gerado o seu filho. Era a obrigação da mulher, mas Justina nunca percebera como um ato tão violento podia provocar prazer no outro. Era um mistério infeliz com o qual vivera sempre, até ao dia iluminado e recente que lhe levara o marido num acidente com o camião que conduzia. 
Da dor intensa da sua obrigação de esposa nascera um único filho, aquele que agora estava sentado ao seu lado, com a mulher e o pequeno David. Justina admirava-os a todos, mas só tinha olhos para o neto. Enquanto o pequeno balbuciava palavras impercitevelmente deliciosas, ela imitava-lhe os sons e sorria. Era finalmente um sorriso calmo, sem medo, puro e verdadeiro. Sorria para o neto que lhe devolvia a pureza em gargalhadas e movimentos ainda descoordenados. 
As mesas do shopping onde almoçavam estavam todas cheias, no frenesim normal de um dia de chuva lá fora. Na mesa de Justina não se ouvia mais nada: só os sons dele, daquele boneco doce que se multiplicava em expressões de felicidade.
Tinha sido assim com o marido, com o filho, e agora com o neto: oferecia a ternura e o carinho e recebia o que viesse, tranquila, em aceitação total daquilo que é e não pode ser mudado. Recebera sempre pouco, muito pouco, se excluísse os murros, insultos e desrespeitos. Do filho tinha amor.
Justina olhava o neto na certeza de que a atenção que lhe dedicava torná-lo-ia um homem bom, como tinha feito com o filho.
O terror do regresso a casa já não existia, sentia-se leve e conseguia ver tudo com mais nitidez. Sem sobressaltos, apreciava os dias e as horas de forma diferente: eram perfeitos. Não havia culpa nesta serenidade, só aceitação da vida, como sempre, como antes.
A certa altura, a nora percebeu que o marido tinha ficado sem água no seu copo. Pegou na sua garrafa, estendeu-a ao marido e disse:
- Toma. Bebe da minha.
Justina desviou o olhar do neto. Respirou fundo. E disse: 
- Sabes, isso que acabaste de fazer é uma grande prova de amor. É sinal de que amas o teu marido, que lhe queres bem.
E no silêncio continuou:
- Sabes, eu nunca tive isso.

sábado, 27 de agosto de 2016

A 3ª parte

Não é nada fácil falar deste assunto, mas agora (há uns meses atrás) que comecei, sinto que devo terminar e talvez fechar este capítulo de vez.

Acordei há pouco de um sono turbulento. Sonhei que estava na maca de um psicólogo e que desabafava compulsivamente. Eis o que eu lhe dizia no meu sonho:

"Este ano trabalhei numa escola com cursos que preparam alunos pouco dados aos livros para uma entrada mais rápida no mundo do trabalho. Recebem um subsídio para frequentar o curso, têm ajudas nas despesas de deslocação, formas de recuperar as faltass e tantas outras vantagens. (Ler os dois textos anteriores do blogue)

Este ano fui muito bem recebida numa escola profissional privada que funciona quase como qualquer  escola pública: horários, diretores de turma, intervalos, reuniões e outros compromissos burocráticos. Direção e colegas receberam-me com toda a simpatia e até com bastante disponibilidade para satisfazer alguns dos pedidos que fiz inicialmente. Tal como me tem acontecido em algumas escolas públicas.

As condições do edifício, contudo, era pobres, muito pobres. Salas frias, sombrias, húmidas, mal arejadas, com vários indícios de degradação, falta de espaço para o número de alunos, enfim... Tal como me tem acontecido em algumas escolas públicas.

A maioria dos alunos eram desmotivados, com poucas ambições (exceto quererem ser modelos e jogadores de futebol famosos), rudes, com poucos princípios e muita falta de educação. Tal como me tem acontecido em algumas escolas públicas.

O material para trabalhar existia, embora nem sempre nas condições ideais, mas era possível trabalhar com computadores, tirar fotocópias, ter internet disponível, desenvolver atividades várias. Tal como me tem acontecido em algumas escolas públicas.

Nas aulas, os alunos usavam o telemóvel quase sem descanso, muitas vezes ligados à corrente porque não há bateria que aguente, queriam jogar às cartas e conversar em voz alta uns com os outros. As conversas incluíam obrigatoriamente todos os palavrões existentes ou inventados e debruçavam-se sobre temas de... prefiro não qualificar. Levantavam-se e passeavam pela sala quando entendiam, saíam para ir à casa de banho, ou comer, ou fumar, ou... talvez para outras coisas também. Às vezes pediam para sair,  outras vezes informavam.

Os alunos dormiam nas aulas, porque se deitavam muito tarde (alguns trabalhavam até de madrugada, outros divertiam-se até essas horas), ou porque não tinham energia para ouvir matérias e realizar tarefas de que eles não gostavam.

Alguns alunos punham filmes pornográficos nas aulas, com som, chamavam-me puta quando lhes virava as costas, atiravam-me papéis quando estava de costas ou mesmo de frente. Os alunos disseram-me que só seriam expulsos da escola se matassem alguém. Os alunos informaram-me de que eles é que mandavam ali. Disseram-me que bastava fazerem uma cena de santos junto da direção e estaria tudo bem. Houve um conselho disciplinar e alguns alunos foram suspensos e depois tive de recuperar-lhes as faltas com aulas extra ou atividades complementares. Fiz participações disciplinares graves que nunca tiveram qualquer consequência: nem reunião disciplinar, nem sanções, nada.

Os alunos fizeram testes e trabalhos que lhes deram positiva nos módulos das disciplinas, sem que isso queira dizer que aprenderam seja o que for. Os professores deram todas as horas de aulas estipuladas nas planificações e cumpriram todos os conteúdos programáticos. Toda (ou quase) a legislação foi cumprida naquela escola.

Os professores que lá estão trabalham há anos (décadas?) a recibos verdes com contratos degradantes, sem qualquer segurança profissional e com pena que não possa ser de outra forma. Alguns por opção, outros não.

Pagaram-me sempre a tempo e horas. Só as horas letivas. Tudo o resto não é pago.

Não, isto nunca me tinha acontecido em escolas públicas.

Havia alguns professores que conseguiam, às vezes, dar aulas (no verdadeiro sentido da palavra), havia alguns que conseguiam controlar os alunos, havia professores que conseguiam desenvolver atividades positivas e interessantes.

Todos (quer o afirmem ou não) estão insatisfeitos com o rumo que a escola está a tomar. Há muitos profissionais ligados à escola que estão a fazer o melhor que podem para que as coisas corram da melhor forma possível. Outros não.

Tive uma aluna que teve 15 no exame nacional de português. Tive alunos educados, respeitadores, simpáticos e engraçados. Foram uma minoria."

Acordei a chorar.

No sonho, o psicólogo não me tinha ajudado em nada. No sonho, o psicólogo tinha ouvido o meu relato e tinha encolhido os ombros.

Felizmente, foi só um sonho. Acordada, estou à espera de ser colocada numa escola pública. Ou quem sabe, à espera que surjam outras oportunidades profissionais. Acordada, sei que há opções eliminadas das minhas escolhas.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Imaginem isto... (2ª parte)

Estávamos então a imaginar um ensino dedicado a alunos que não querem prosseguir vida académica. Havendo escolas dedicadas apenas ao ensino profissional, seria possível concentrar num espaço só todos os jovens com o mesmo tipo de interesse: prepararem-se para o mundo do trabalho. 
Ao fim do mês, receberiam uma bolsa que ajudasse a fazer face às despesas, onde estariam incluídos os transportes e a alimentação. Se os alunos tivessem necessidade de faltar às aulas, seriam penalizados nesse valor, mas teriam de compensar essas horas de aula através de aulas extra ou de trabalhos que compensassem o que perderam nas horas que faltaram. Sem limites impostos. Qualquer número de faltas.
A própria escola seria financiada através de um sistema diretamente relacionado com o registo da assiduidade e do aproveitamento dos alunos. Deste modo, a escola estaria imediatamente envolvida na motivação dos alunos, pois seria penalizada se os alunos faltassem, reprovassem ou abandonassem a escola. 
Os professores, por sua vez, - e enquanto rosto visível deste tipo de escola - fariam os possíveis para cativar e preparar estes alunos para a sua entrada no mundo do trabalho.
Além disto tudo, a cada turma seria ainda dada a possibilidade de estagiar durante os três anos do curso, de forma a promover a integração destes alunos no mundo laboral, quem sabe até ficando nas empresas onde efetuam a componente prática em contexto de trabalho.
Este exercício de imaginação parece-me absolutamente fantástico, não?

No próximo texto, deixarei de imaginar e passarei à constatação da realidade. Se quiserem, acompanhem-me.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Imaginem isto... (1ª parte)

Imaginem que havia um sistema educativo onde era obrigatório andar na escola até aos 18 anos. Os jovens saíam do sistema só quando completassem a maioridade ou o 12º ano, preparados para ingressar no mercado de trabalho, com habilitações académicas e profissionais. Evitávamos a exploração de jovens no mundo do trabalho que não soubessem reconhecer os seus direitos, ou que não estivessem preparados para lutar por eles. Entrariam nesse mundo apenas depois de uma formação coerente, que os munisse das competências necessárias para enfrentarem um mercado competitivo e nem sempre justo. Ganhavam as empresas na qualidade dos seus trabalhadores, ganhava um país com um nível de escolaridade alto, que se traduz, obviamente, num país com uma mentalidade mais aberta, com uma população mais culta e educada.
Imaginem que as pessoas queriam ser mais cultas e educadas e que lhes era oferecida essa oportunidade.
Imaginem também que depois dos 14 anos, mais coisa menos coisa, os alunos até podiam estudar e receber um subsídio ao fim do mês. Ou seja, não uma educação gratuita, mas uma educação financiada: um incentivo extra como bónus por adquirirem as capacidades mínimas para o desempenho de uma atividade profissional.
Imaginem que até se criavam escolas exclusivamente para esses alunos, que, não pretendendo progredir em percursos académicos de nível superior, procuravam uma formação profissional que lhes permitisse ir trabalhar com qualidade. Não precisavam de se preocupar com investimentos financeiros, já que, como disse, receberiam um incentivo monetário simbólico para ajudar na sua preparação para o mundo laboral.
Estão a imaginar?
Hoje só me apetece imaginar até aqui.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

A sombra

Havia uma marca estranha na madeira da janela. Tinha uma forma arredondada, como se tivesse sido feita pela parte de trás de um lápis com borracha, quando esta já se gastou e deixou apenas a aresta de metal exposta. Se lhe perguntassem haveria de explicá-la assim: alguém cansado de procurar as palavras foi rodando aquela parte do lápis - tão inútil quando se perdem as palavras - de encontro à madeira da janela velha da casa da sua avó. Ficou ali sentada, no namoradeiro esquerdo. Não conseguia parar de pensar no que teria atormentado o autor daquela marca - ou a autora (talvez até a sua própria avó). Era um mistério que existia há anos ali mesmo naquele lugar. Não se alterava, nem alastrava, apenas uma pequena mudança no tom, que o tempo sempre traz cores diferentes à vida. Ao contrário dos cabelos da sua avó, aquela mancha tinha ficado, com os anos, mais escura. Apertou os olhos para conseguir analisar ainda melhor aquela marca, mas as únicas respostas continuavam a ser as da sua imaginação.
Decidiu então pegar num lápis, voltar a olhar o círculo que a intimidava, e começar a escrever. O título, sempre o título em primeiro lugar. Para ela era sempre assim. Uma palavra, uma expressão, um significado e um significante e todo o texto surgia, tal caule rebentado desse pequeno tópico. Não os escolhia, encontrava-os - tal como tinha encontrado aquela marca na janela. 
Momentos mais tarde, a folha estava cheia. Palavras e personagens, espaços e cores. E uma sombra. Parou assim que a viu e percebeu que todas as respostas do mundo estavam ali, naquela pequena sombra. Uma mancha que cobria algumas das suas linhas, uma pouco usual forma apresentava-se assim, em simplicidade de cinzentos, em ausência de luz, em objetos velados pela falta de luminosidade.
Era apenas uma sombra, uma sombra de uma coisa qualquer - pouco importa do quê quando apenas uma sombra consegue trazer todas as respostas do mundo.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Adoro-te, porca!

Sempre fui apaixonada pelas palavras. Aprendi a conhecer-lhes o significado e a associar-lhes valor. Tenho a minha própria forma - como temos todos - de lidar com elas. Porque sou do norte, acrescento-lhes sons e torno-as mais redondas, talvez até mais pesadas, mas garanto que as adoro. Gosto de as explorar, de brincar com elas, de lhes perder o medo, de as respeitar, ou de as reinventar.
Por exemplo, aceitei a palavra madrasta, quase ao mesmo tempo que preenchi os recantos da palavra saudade; percebi o que queria dizer amor quando a liguei à dor do parto; entendi a palavra coragem quando perdi o medo à solidão; conheci o valor da palavra amizade quando dela dependeu a sanidade. As palavras são tudo. Dizem exatamente aquilo que significam e só através delas conseguimos legendar a importância do mundo.
Prefiro chamar tristeza - em vez de revolta - ao que tantas vezes sou obrigada a testemunhar. Retirar o significado das palavras (e dos gestos, das atitudes, dos comportamentos) é banalizar um mundo que é precioso de mais. Nos dias mais escuros, em que me é mais difícil enxergar a luz, quase baixo os braços perante a força dos banalizadores. São tantos que me assustam.
Mesmo assim, continuo a luta! A luta contra:
- os que insultam os amigos, porque era só a brincar;
- os que gozam o colega, porque era só a brincar;
- os que apalpam a rapariga que passou no corredor, porque era só a brincar;
- os que atiram papéis à professora, porque era só a brincar;
- os que chamam porca à irmã, porque era só a brincar.
Sou dos da luta contra os banalizadores. Fico triste ao ver tanta gente que não consegue identificar a importância das coisas. Cansada de ouvir dizer: "Deixe lá, é igual!" Não, não é igual!
Adoro-te, meu amor não é igual a adoro-te, porca. Inclusivamente, este é o meu título de post mais feio de sempre!

terça-feira, 26 de abril de 2016

¡No pasa nada!

Este fim de semana atravessámos a fronteira.
Nem parecia ser uma boa opção por várias razões:
- só podíamos ir no domingo, já que sábado tinha compromissos académicos;
- previa-se tempo quente em Portugal e nem por isso em Salamanca;
- a miúda tem testes esta semana toda.
Contra todos os argumentos, decidimos ir na mesma. Dois dias é sempre melhor do que nenhum; o sol, apesar de mais fresco do lado de lá, brilhou intensamente; e o resultado dos testes da pequenita espero que não estivesse dependente do estudo de véspera! Além disso, aprende-se muito quando se anda a passear.
Vejamos, então, se aprendemos alguma coisa.
1. Acordar cedo com a excitação da viagem dá uma soneira inacreditável durante a viagem. Sim, com quase 40 anos, já sabia isto há muito tempo - mas não há meio de aprender! Não acordo cedo se tiver um exame ou alguma coisa de responsabilidade, mas se for de viagem, não há volta a dar.
2. Viajar para Salamanca tem alguns pontos fortes: um deles é que, saindo do Porto a uma hora decente da manhã, chega-se lá mesmo à hora de almoço - à nossa e à deles -,  e assim conseguem-se harmonizar as diferenças de hábitos.
3. A criança percebeu que, mesmo com apenas 10 anos de idade, entende tudo (ou quase) o que os espanhóis dizem, consegue comunicar razoavelmente com eles e não deixou escapar que o contrário não se verifica. Assim, falar português é uma arma e uma defesa!
4. Sendo nós tão poliglotas, lemos o jornal local logo pela manhã de segunda-feira. Dizia mais ou menos isto uma das notícias: "Com a descida do preço dos combustíveis, há um significativo aumento da circulação de transportes de mercadorias e consequente melhoria na economia." Curioso! Faz sentido! Que ideia inovadora! Por cá, aumenta-se o preço dos combustíveis e obriga-se toda a gente a pagar portagens com consequente... Com consequente... não me estou agora a lembrar da consequência... Ajudam-me?
5. Visitei uma amiga com quem fiz Erasmus em Londres há 19 anos. Outra coisa curiosa: não mudámos nada! Eu asseguro que ela está tão bonita e jovem como há 19 anos atrás. Ela assegura o mesmo em relação a mim!
O quanto se aprende em dois dias!
Só espero que as contas que fizemos às diferenças no valor do gasóleo, as constantes traduções de português-espanhol e geografia percorrida se reflitam positivamente nos testes de matemática, português e estudo do meio da minha Mafalda! E se não... ¡No pasa nada!

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Entre bofetadas, lãs e agulhas

Quem lê e estuda literatura portuguesa ou história de Portugal repara que a nossa sociedade apresenta uma estranha uniformidade histórica, como se o passar do tempo mudasse apenas os ornamentos e deixasse intacto o interior dos agentes sociais. Passeando pelas páginas de Eça, de Sttau Monteiro ou de Saramago (como fazemos diariamente no ensino secundário), encontramos críticas sociais que são incrivelmente atuais. Nada de novo. Já nos habituámos a que os estudiosos realcem este facto.
Pessoalmente, gosto de acompanhar estes acontecimentos que apimentam os noticiários, mas principalmente os blogues e imprensa escrita. 
Admiro a capacidade de sermos todos diferentes, de encararmos a mesma realidade sob pontos de vista completamente distintos. É, de facto, admirável, a diversidade de opiniões.
Eu, como outros, encontro esses paralelos históricos e literários e acho-os fascinantes. A personagem que é arrogante e que se sente, genuinamente, superior aos outros e que consegue, ainda por cima, notoriedade pelos cargos que vai conseguindo desempenhar, só pode manifestar essa arrogância no seu dia a dia. Sente-a lá dentro e disfarçá-la, apesar de conveniente, seria um esforço hercúleo e, como se vê, impossível. Prometer bofetadas, salutares ou não, é exprimir superioridade. É arrogância social; e eu sei isso porque às vezes também sou atacada por essa vontade incontrolável de exprimir a minha superioridade em relação a outros. Mas depois penso: é melhor não, não é bonito. Exprimo-a na mesma, a maior parte das vezes, só para dentro e, quando sai, penso que tenho sorte em não ser ministra. Conclusão: o azar foi ele ser ministro.
As agulhas e as lãs não me merecem tanta atenção porque nunca fui muito dada às artes plásticas, esculturais, às de sucesso - como se vê. Não sei, portanto, identificar-me nessa vontade de levar agulhas e lãs numa travessia marítima perigosa. Percebo, contudo, a dificuldade de separação em relação à coleção Apple, embora ache muito estranho que não tenha selecionado uns alimentos para levar. Eu colocaria na mochila comida e água. O resto não sei, talvez a enchesse mesmo só com comida. Mas, pelos visto, nem todos têm tanto apetite como eu; ou será que tem a ver com as reservas?! Tendo mais reservas lá dentro, não precisa de as levar na mochila. 
E entre Gouvarinhos e Dâmasos Salcedes continuamos a jornada.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Bom dia, Portugal!

No programa "Bom dia, Portugal!" (RTP 1), de hoje de manhã, na rubrica Bom Português, a jornalista perguntava se se dizia "O diretor está a par da situação." ou "O diretor está ao par da situação." Um lisboeta, convicto dos seus conhecimentos de língua portuguesa, respondeu: "A par! A par! Ao par é muita mau!"
E eu já me ri o suficiente para o dia todo. Os lisboetas são mesmo engraçados.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

O Post de hoje é para o Professor Lino!

O meu grupo da pós-graduação é constituído por dez mulheres. Este facto só por si daria para muitas linhas de divagação - mais ou menos filosófica. Sim, as mulheres, no geral, são extremamente filosóficas: têm teorias, formas de encarar a vida, normas para sobreviver ao dia a dia, opiniões, sugestões, mais opiniões e ainda extra opiniões. Foi assim que nos ensinaram, que nos educaram, e nós fazemos jus a tudo isso. E eu acho muito bem; é esta a minha opinião!
Na pós-graduação, geralmente, temos professoras, mas, desta vez, temos um professor! O professor Lino Oliveira está cansado de comprovar esta minha opinião: que as mulheres têm muitas opiniões. E este post serve apenas para isto: Professor Lino, desculpe, não fazemos por mal - é apenas a nossa natureza.
P.S. Professor, repare bem nas etiquetas, esta publicação vai ser um sucesso!

terça-feira, 22 de março de 2016

Rotinas (quebradas)

Cresci tranquila, num mundo onde desejar a paz no mundo parecia quase uma anedota própria de meninas loiras e que pouco ou nada entendiam do que desejavam (sortudas!). Nasci e cresci num mundo tendencialmente solidário e consciente. Cresci sem entender verdadeiramente o papel dos militares num país como o nosso. Vivi a Europa como espaço de partilha e de aprendizagens. Sentei-me nas escadarias da National Gallery só para ler um livro ao sol. Fiz amigos de todas as nacionalidades; vivi com católicos, muçulmanos, hindus e testemunhas de jeová e eram apenas colegas lá de casa. Tornei-me mulher sem ter medo de o ser. A guerra, ainda que transmitida em direto, estava tão longe. Que sorte tive em ter crescido num mundo assim.
Contudo, estudei utopias que me mostraram como é perigoso esquecer que o mal existe, sublinhando a importância de ciclos reavivadores de memórias e sentidos. Aprendi a dar valor a todas as coisas boas, porque cedo algumas das melhores coisas da minha vida tiveram que ir embora. Nunca dei nada como garantido na minha vida. Exceto talvez a paz.
Agora, proíbo-me de verbalizar aquilo que sinto. O que verdadeiramente sinto não pode ser audível, pois expressá-lo seria dar-lhes a vitória. Posso ter crescido em paz, mas sei arregaçar as mangas para lutar. E lutar, para mim, é saber amar.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Sou crescida!

Talvez por estar ligada aos adolescentes no meu dia-a-dia, dá-me sempre a sensação de que os meus anos de teenager não estão assim tão distantes de mim. Quer dizer, eu não me sinto uma jovenzinha inconsequente - longe disso -, mas parece que ainda fico surpreendida por algumas características da minha vida adulta. Isto é, às vezes estou a fazer alguma coisa e penso "Sou mesmo adulta, isto é coisa de gente crescida e eu estou a fazê-lo." 
Talvez pareça ridículo ainda pensar assim, principalmente por já ter uma filha com 10 anos e já ter passado por um divórcio, mas confesso que é verdade: ainda fico surpreendida por estar a fazer coisas de adulta. 
Ao contrário do que muitas pessoas poderão estar a pensar, é entusiasmo que acompanha esses meus pensamentos. Quando era miúda, queria muito estudar e andar para frente para poder construir a minha vida. Nem tudo correu sempre bem, mas tenho atingido os meus objetivos. Adoro ser adulta e fazer coisas de adulta. Podendo escolher, como às vezes fantasiamos, eu gostava de ficar para sempre adulta e não criança ou jovem, como outros desejam.
Hoje sinto-me crescida! O olhar para trás e ver que este papel parece coisa recente significa que, apesar de tudo, todas as minhas atitudes e rotinas de adulta me fascinam e entusiasmam como se as tivesse adquirido há pouco tempo.
E adultos desse lado, também se sentem assim?

sexta-feira, 11 de março de 2016

Uma questão de peso ou de falta dele

- Foi à minha escola uma escritora, mamã.
- Que bom! Gostaste?
- Sim. Ela falou sobre as histórias que escreve e disse que alguns dos meninos das suas aventuras são meninos de cor.
- Ai sim? De cor?
- Sim.
- De que cor?

A esta pergunta, a resposta foi apenas um olhar. Como se pela primeira vez se apercebesse do que tinha acabado de dizer. 
Há, de facto, cicatrizes que demoram a passar. A humanidade tem aberto inúmeras feridas que são, depois, difíceis de curar. Não são assuntos leves e as palavras podem ser apenas palavras ou podem ser tudo. Depende do peso que levam consigo. 
Eu escolho tirar-lhes o peso: às vezes e apenas simbolicamente.
Eu sou branca (até de mais para o meu gosto). Tenho amigos pretos. Ou melhor, são castanhos. Mas eu também não sou bem branca: sou meia rosa misturada também com amarelo... É uma cor esquisita, para dizer a verdade. A minha base de maquilhagem é bege (diz na embalagem), mas eu vejo castanho.
Tenho amigos ainda mais claros do que eu, e outros bem mais escuros. Alguns são tão corados que só lhes posso chamar vermelhos (e não é daqueles que têm mau gosto desportivo). Outros amigos são mulatos - os giros: nunca vi mulato feio! Diz no dicionário que são de pai branco e mãe negra ou vice versa.
Na verdade, segundo uma decisão da ONU logo após a II Guerra Mundial, deveríamos era falar de grupos étnicos e não de raças ou de cores. Pois... Há nomes para todos os grupos étnicos? Há um número fechado de grupos étnicos no mundo?
A mim pouco me importa. Se preciso de caracterizar alguém com algum traço distintivo posso usar muito bem a cor da sua pele e dizer um preto; ou a cor do seu cabelo e dizer um ruivo; e por aí fora. Posso, não posso? Ou é falta de educação e deveria dizer negro? Africano de certeza que não! Tenho um lá em casa que ainda é mais branco do que eu!
Posto isto, vou continuar a dizer preto, porque o digo sem peso. Mas sei bem que ainda há pesos de que temos de nos libertar. E é por isso, por exemplo, que o dia da mulher ainda faz sentido, e muito. Basta ler o jornal.

terça-feira, 8 de março de 2016

Ensaio sobre o Medo

Estavam de mãos dadas, agarrados como se a vida dependesse daquele aperto e caminhavam na segurança vã dos apaixonados. Ele era alto e, embora franzino, transmitia-lhe a tranquilidade de que ela necessitava. Fingia-se frágil para ele parecer maior, escondia-se na delicadeza estudada que ele achava adorável.
Naquela noite, entraram no apartamento procurando o refúgio para o amor que os consumia, faltavam quinze minutos para a meia-noite, faltava muito menos para a urgência dos corpos. No gritinho abafado que ela soltou ao toque viril da mão dele na sua coxa nua, não notaram o barulho metálico do trancar da porta.
O bater forte de uma porta no corredor, contudo, foi impossível de ignorar e colocou em pausa os corpos já enrolados em cabelos e suor. O bater dos corações tornou-se ainda mais forte ao ouvirem passos pesados atravessarem as divisões contíguas ao quarto. A mão dela procurou a dele e puxou-o com força para fora da cama; quebrou-lhe a apatia com um safanão mais forte e esconderam-se debaixo do colchão, donde pendiam lençóis brancos feitos escudos.
No instante em que recolhiam ainda as pernas na trincheira improvisada, a porta sofre um golpe duro que a atira contra a parede numa violência ruidosa. Enrijeceram os corpos, um contra o outro, ainda nus, revelando a fragilidade real dos dois. Sentiram o vibrar do solo a cada passo adivinhado da criatura que se aproximava. O lençol não os deixava ver a fonte dos sons, mas acompanhavam as vibrações que lhe denunciavam o percurso e, ao sentirem que se dirigia à casa de banho, ela sussurrou-lhe ”Vamos!”
Agarrou no lençol que cobriu os seus corpos nus e esvoaçaram para fora do quarto, quais fantasmas em busca desorientada pela paz eterna. Ela lançou a mão à porta de entrada, agora de saída, que se oferecia resistente e pelo olhar ele entendeu que a devia ajudar, mas de nada valeram os golpes masculinos perante a firmeza da porta trancada.
Os barulhos do arremesso de objetos continuavam e eram agora acompanhados por uns grunhidos graves e roucos. Quando ela ajustava o lençol para os tapar melhor na fuga, avistou o sexo dele, que há muito abandonara a ereção, e estava agora recolhido e tão mirrado que quase lhe provocara riso, não precisasse ela de se concentrar no plano que inventava. Empurrou-o na direção oposta dos ruídos que se aproximavam e, ao olharem para trás, conseguiram apenas ver uma sombra imensa.
Entraram numa pequena despensa e trancaram-se lá dentro, aninhando os corpos em terror. Os passos aproximavam-se e eles escorriam suor numa lubrificação agora inútil; ela sentia-lhe o bater forte das pulsações e quando a maçaneta da porta estremeceu, ele pegou-lhe no corpo pequeno e ajustou-o na frente do dele. Encurralados e sem tempo para pensar, viram a porta entreabrir-se.
Foi então que, sem ela adivinhar, ele pegou nela numa força descoberta, atirou-a para fora da despensa de encontro à fonte de terror e, esperando a liberdade pela oferenda que fazia, gritou:
- Desculpa, tenho medo!

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Apoplexias com sexo

Pensei em fazer aqui uma espécie de compilação de tudo o que já li sobre o cartaz do BE. Pensei que seria interessante agrupar argumentos a favor e contra e fazer uma espécie de balança para ver a tendência generalizada. Concluí, contudo, que isso me poderia causar uma apoplexia e decidi dar apenas a minha opinião. Afinal, foi o que os outros fizeram também. Cada um vai buscar a argumentação que lhe serve para fundamentar o seu ponto de vista, desde santos e milagreiros a Charlies e Maomés. Eu não sou assim tão culta, mas também sei apoiar os meus pontos de vista em pilares importantes. 
Antes de passar à minha opinião, apresento, sem mais, o meu grande pilar de fundamentação: Ricardo Araújo Pereira. Disse ele aqui há uns tempos, parafraseando, que há por aí quem se enerve porque nós gostamos de ir ao cinema, porque gostamos de vestir saias, porque gostamos de ir ao restaurante ou a um concerto de música, que se enervam porque gostamos de humor negro, ou porque nos rimos com as piadas dos pregos Garcia (espero que conheçam a anedota). Não terá usado estas exatas palavras, mas defendia que nos devemos levantar pelos nossos valores culturais. Ora, posto isto, só posso confessar a todos os anjos e santos e a vós irmãos que achei o cartaz extremamente engraçado, muito bem apanhado e não me senti em nada ofendida nas minhas crenças religiosas. Há por aí uns católicos não praticantes (tanto quanto eu sou vegetariana não praticante) que acham um exagero e uma ofensa. Sabem o que lhes digo?? Nada. Estão no direito. Cada um no seu. Eu diverti-me muito, mesmo muito. Quase tanto como com os conselhos do sr. Primeiro-ministro (e eu até deixei de fumar!!)!
Espero apenas que não tenha havido apoplexias causadas pelo cartaz! E para completar o título deste texto, falta apenas a parte do sexo. 
Cá vai então: Velório em Direto na CMTV! Eu sei que nenhum dos meus amigos é cliente desse canal, mas isso sim, é caso para dizer vão-se f*der.  

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Uma vontade irresistível

Penso muitas vezes em desligar a televisão, para não ter de ver as notícias transmitindo o pior que pode haver na natureza humana. Fico confusa e perdida na necessidade de me confrontar com essas realidades e com a urgência de as filtrar e interpretar para a minha filha. Não é fácil explicar por que uma mãe faria mal a um filho, como, apesar das grandes diferenças culturais, se consegue deixar uma menina sozinha em casa. 
Infelizmente, sei que isto acontece muitas mais vezes do que as que são noticiadas nos meios de comunicação, mas sentir-me encurralada perante as evidências impede-me de fingir que nada disto é possível. Talvez enfiar a cabeça na areia não possa nunca ser a solução: talvez agir seja tão imperativo como a própria condição humana. Porém, confesso, há dias em que prefiro viver num mundo onde finjo não saber que estas coisas existem. Prefiro viver a paz e a tranquilidade, o amor e a entrega da alma como únicas possibilidades humanas. Faço-o numa tentativa de esconder o erro para que não sirva de modelo. Nas minhas aulas, nunca o monstro, para que, não sendo nunca visível, não possa nunca ser copiado. Será possível ser assim no resto da nossa vida? Se não víssemos nunca o mal, será que nunca o concretizaríamos?
Um destes dias, uma das minhas alunas tomou uma decisão polémica que alterou o curso da sua vida, provavelmente de forma definitiva e preponderante. Não a posso julgar. Desejo-lhe o melhor, sabendo que as decisões marcantes nunca podem ser fáceis, mesmo que aparentemente pareçam levianas. É a vida dela. Terá de a viver confiando em si mesma. 
Contudo, há uma vontade irresistível (gostava de acreditar que principalmente na adolescência) de criticar, avaliar e julgar o outro. Os pares dessa minha aluna debatem-se em comentários tão inúteis como incrivelmente injustos sobre a atitude dela. Estranho e irónico é saber que a miúda, cuja mãe se endividou em favor dela e que teve de emigrar muito por força das exigências materiais da mesma (deixando-a para trás ao cuidado de terceiros), critica a outra por ter deixado o conforto material e emocional para retornar a uma família que em tempos fora um perigo para ela. Se ela acredita que o amor que ainda assim resistiu lhes faz falta, quem somos nós para criticar? Talvez seja um erro. E se o for, só ela sofrerá as consequências.
Esta vontade irresistível de enfiar a cabeça na areia - que eu também sinto - não deveria manifestar-se na incapacidade de olhar para si mesmo. Quanto mais soubermos olhar para dentro de nós, quanto mais compreendermos a nossas próprias incongruências, mais conheceremos e aceitaremos o outro. Há momentos em que o silêncio é a única solução - porque nem sempre há palavras.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

A neve

Há muitos anos que não via nevar. Passar a viver junto ao mar, retirou a neve do meu dia a dia invernal, se não como presença diária, pelo menos como uma promessa real.
Ontem, ao acordar longe de casa, a neve começou a formar-se e, com ela, a promessa concretizada de purificar os solos. Diz quem sabe que é essencial para a terra, convivem com ela como um elemento natural que é, despindo-a das atrações turísticas que inevitavelmente também traz. Penalizando os incautos, a neve provoca cuidados e olhares atentos, como se lentamente o mundo abrandasse para a ver chegar. Quando neva, parece que tudo acontece mais devagar.
Faz falta, por isso, ao mundo. Lá, onde neva, a vida é mais pura, porque é abençoada por este abrandar protetor. Quando o véu pousa, devolve a verdade e honestidade aos homens. O branco cobre e absorve a corrupção no mundo: obriga o tempo a parar em contemplação, exterior e interior, para depois seguirmos renovados. A fé recarrega-se no crer que por baixo do manto branco continuam as sementes que surgirão em breve.
É assim a fé: a certeza de acreditar sem ver, de desprezar os sentidos mais mundanos e confiar no que sentimos com o coração. E é tudo isso que vem num leve floco de neve. 
Por isso, gostava que um manto espesso de neve branca e gelada pudesse cobrir toda a terra, por momentos, para conseguirmos voltar a acreditar, para trazer de volta a honestidade e a fé. A sinceridade inevitável do frio da neve faz falta ao mundo.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Outra vez Carnaval!

Há sempre um momento na vida de todas as pessoas em que o Carnaval faz sentido, ou melhor, é entendido. Insere-se na tradição católica, por oposição e em seu complemento, e antecede a Quaresma. Pelo menos há dias em que tenho este sonho: o sonho de que todos sabem o que andam a fazer e não andam só por ver andar os outros. 
Embora eu não costume aderir às festividades carnavalescas - nem quando era miúda achava grande piada -, entendo bem o significado da tradição. Assim como entendo o significado do cozido nesta terça-feira - e dessa tradição sou bem mais adepta.
Por ser professora e lidar todos os dias com muitos seres diferentes de mim, cujas mentalidades tento conhecer para melhor lá chegar com o que pretendo transportar, procuro sempre olhar para o outro de um ponto de vista inquisitivo, curioso, por vezes até com um olhar científico. Gosto de ser democrática e moderna, aceitando a diferença, respeitando-a e até a promovendo. Mas há limites.
Há anos que procuro esta resposta e não consigo encontrar: por que razão um povo que vive o Carnaval no inverno, regra geral rigoroso e chuvoso, teima em imitar e copiar tradições de países com temperaturas acima dos 35ºC? Será até mais honesto da minha parte dizer: mas por que raio se dança samba ridícula e praticamente sem roupa nas ruas de Portugal imitando uma tradição brasileira? Porquê? Para quê?
Já me passou pela cabeça que é apenas exibicionismo. Que há mulheres que aproveitam qualquer motivo (socialmente justificado) para se despirem em público. Não que me incomode. Na verdade, não me incomoda. Que se exibam à vontade: só vai ver quem quer. Mas está frio! Está frio, chuva e vento. Quase sempre, quase todos os anos, porque incrivelmente o Carnaval em Portugal cai sempre no inverno! Não faz sentido. Faz? Pois eu nem me dispo, nem vou ver quem se despe. 
Gosto das nossas tradições, gosto dos caretos, gosto das matrafonas, gosto dos palhaços e de criancinhas vestidas de animais. Gosto de fantasia e de imaginação. Gosto de criatividade. Copiar o Carnaval do Brasil devia ser considerado plágio. Se era para copiar e mostrar que não têm ideias próprias, então que copiassem o de Veneza. Lá também está frio como cá. As fantasias são adequadas ao clima. Mas é raro ver disso: copiado só mesmo tudo o que implique mostrar nádegas e seios, independentemente do frio.
Tanta coisa interessante para copiar no mundo...

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

A varanda (iv)

Ana arranjou-se com celeridade, que o sr. Alberto precisava de começar os trabalhos imediatamente. Calça de ganga justa, T-shirt e sapatilhas brancas: parecia mais nova. Pedro estava na esplanada lá em baixo, já depois de ter comunicado à mãe os recentes planos para o almoço. 
Parou, subitamente, a leitura do jornal por causa do tal estranho som que reaparecia e interrompia o silêncio que o levara às notícias. Levantou o rosto à procura de alguma coisa que o explicasse e sentiu uma mão pousar no seu ombro, como uma pena, e trazendo um aroma já conhecido. 
Seguiram a pé até à praia.
- Então, Pedro, moras por aqui?
- Sim, sou espécie autóctone. E gosto! Esta terra é muito simpática. As pessoas são simples, mas chegadas. Não nos falta nada do que importa: praia, mar, sol, árvores... Os acessos à cidade também são bons, por isso aquelas obrigações urbanas estão ao alcance de uma pequena viagem.
- É verdade, já não é a primeira vez que passo aqui um fim de semana. A experiência tem sido boa, por isso vou repetindo.
- És de longe?
- Não, em pouco mais de meia hora chego aqui, mas é o suficiente para encontrar o que normalmente não consigo ter em casa. 
- A praia?
- De certa forma... O silêncio. 
- O silêncio? Na praia? Comigo acontece exatamente o contrário: vou até à praia quando estou farto do silêncio. Ali as ondas preenchem-me todos os sentidos, até o da audição. A aldeia é sossegada, com poucos eventos, às vezes faz falta o ruído. 
- Sim, por isso hoje de manhã se sentiu tanto o som da persiana a cair.
- Vês, faço bem em procurar o barulho. O ruído tem sempre consequências. Desta vez, boas.
- Eu venho para cá à procura das consequências do silêncio.
- E encontras?
- Quase sempre. Preciso do silêncio para escrever.
- E para ler, não? Eu preciso dele para encontrar e entrar nas palavras.
- Não, para ler não preciso do silêncio. A leitura transporta-me para longe da realidade. Mas a escrita exige-me sossego, pede solidão. É isso que encontro aqui. Ou pelo menos tenho encontrado. Hoje foi  uma exceção: culpa do calor. 
- Do calor?
- Sim, não fosse este calor e eu não estaria a escrever praticamente despida. 
- Então a escrita pede-te silêncio e frescura.
Sorriram e chegaram ao areal. Estava calor, de facto. O dia prometia.
- Então não trouxeste os chinelos condizentes com o prato do dia? - perguntou, provocador.
- Os chinelos não. 
O silêncio teve tradução para ambos: de repente não foram as calças de ganga que se sentaram na mesa do bar da praia, mas as cuecas vermelhas. Pediram o prato do dia. E o estranho som permanecia.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

A todos os meus leitores

Não alinho nas críticas irónicas de que em noite de eleições foram todos estranhamente vencedores. Na verdade, não podemos ignorar uma série de resultados surpreendentes. 
O maior de todos tem de ser, infelizmente, o da abstenção: continuamos a verificar que a maior parte da população está (não desligada da política, como se costuma dizer), mas desligada da vida. Ainda não consigo entender por que deixam que escolham por eles, quando, aparentemente, parecem ser tão críticos e senhores de opiniões em relação a tudo. No momento em que podem, de facto, marcar a diferença, importar, mostrar que existem, escolhem uma apatia ridícula e ignorante.
Em segundo lugar, os resultados dos candidatos: um eleito à primeira volta sem um único cartaz nas ruas - obrigada! - embora com anos de direito de antena televisivo; um intelectual mais ou menos desconhecido que se mostrou próximo das pessoas é capaz de derrubar máquinas partidárias; uma jovem doutrinária de teorias tão estranhas, mas que consegue chegar a um número impressionante de pessoas; um calceteiro que ensina, sem dúvida, que a política é um dever de todos e consegue convencer cidadãos de todo o país. E estes foram para mim os vencedores.
Porém, esta campanha disseminou um vírus (uma epidemia, a meu ver) que já andava presente, ainda que mais ou menos confinado. Agora espalhou-se: sem pudor, sem distinções, assustadoramente! Quando estudava na escola primária, aprendi que na nossa língua, quando nos dirigimos ou referimos a um público misto, devemos usar o género masculino. E foi assim durante muitos anos e nunca me senti discriminada por isso; era (e continua a ser!) uma regra da língua portuguesa. Dava até azo a algumas brincadeiras engraçadas e inofensivas. Agora, já todos ouviram, perdeu-se o uso dessa regra entre os políticos. Somos obrigados a ouvi-los repetir todos os vocativos, determinantes, nomes e adjetivos no masculino e no feminino. 
Estou farta! Primeiro, eram apenas os da esquerda moderna, mas nesta campanha alastrou-se deselegantemente a todas as fações. Primeiro, limitavam-se a acrescentar o feminino logo a seguir ao masculino (imagino as horas de treino que foram precisas para mecanizar o trejeito!), mas agora até dizem o feminino antes do masculino numa espécie de competição absurda e patética sobre quem dá mais importância às mulheres! Torna o discurso pesado, é um pouco patético, não flui, não enriquece os enunciados e muito menos prova que dá importância às mulheres.
Quando me dirijo aos meus leitores, dirijo-me a todos os meus leitores. Preciso de explicar o que isso significa? Tenho a certeza de que não! E o que se segue? Deixar de dizer queria um café para passar a dizer quero um café?? Não deixem, por favor. 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Atenção! Este é um texto de autoajuda.

Há experiências pessoais que vale a pena partilhar: as que encorajam, as que influenciam positivamente, as que empurram para a frente.
Costumo dizer aos meus alunos que, a todo o momento, andamos a semear aquilo que um dia colheremos. Por vezes, a colheita é feita a curto prazo, mas, na maioria das vezes, ela acontece a longo prazo. O exemplo que lhe dou consiste basicamente no seguinte: 
Um dia, quando eu for dona de uma grande empresa e precisar de funcionários, vou lembrar-me de alguns dos meus alunos - em princípio, dos melhores e dos piores. Dos medianos, daqueles que não deixam marcas, quase nunca ninguém se lembra. É essencial dar nas vistas, chamar a atenção, ou marcar por algum motivo inesquecível. Nessa altura, os piores aparecer-me-ão na memória e não vou esquecer que não me serivirão para nada. Se os reencontrar numa entrevista de emprego, tenho a certeza de que me lembrarei deles e, sorrindo, direi "Se for selecionado, entraremos em contacto consigo brevemente", ao mesmo tempo que estarei a pensar "Não tens hipótese! Lembro-me bem de como eras preguiçoso!". Claro que todos podemos mudar, crescer, evoluir, correr atrás do prejuízo. Porém, nem sempre há tempo para reparar nisso e, sendo assim, contam as primeiras sementes lançadas.
Por outro lado, os que me marcaram positivamente provavelmente nem terão de procurar o anúncio de emprego, eu própria irei à procura deles. Do mesmo modo, lembrar-me-ei deles se alguém me pedir conselhos ou me perguntar se conheço alguém adequado para este ou aquele trabalho.
Poderá ter passado apenas meio ano, ou um ano, mas também podem ter passado vários. A semente fica. 
Espalhamos sementes a todo o momento: num sorriso, num por favor, num obrigado, num segurar de porta. Mas também fica semeado com profundidade cada não, cada olhar torcido, cada palavrão, cada desculpa esfarrapada, cada preguiça.
Felizmente, tenho podido colher o fruto de muitas sementes. E penso muitas vezes: a minha sorte é tentar sempre deixar algo bom por onde passo. 
Só me falta mesmo ser dona de uma grande empresa! 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

(In)satisfações

Todos os factos têm duas versões.

Acordo de manhã, quando a luz está também a chegar. Estico o braço direito, depois o esquerdo, as pernas são as duas ao mesmo tempo. Levanto-me e penteio o cabelo (está bonito). Olho para o lado e ouço os passinhos pequeninos a entrarem no quarto (sorrio). O quarto não é meu, é nosso. O chuveiro não é grande coisa, mas ainda assim o melhor do mundo só porque está ali. Água, perfume, beijo, pão, café, papel, chave, carro. Fui. 

Enfrento as feras, discorro em frustrações e em certezas. Entremeio tudo com literatura e música, que é o mesmo mas embalada. 
Está sol e consigo carregar a bateria. Vejo árvores, céu, azul, cinzento, relva, verde, pássaros, garças (talvez), televisão, papel, computador, estrada, trabalho, projetos. Corro.
Telefono à amiga que tinha saudades minhas, recebo um convite para um casamento, leio as notícias, jogo no euromilhões (era bom!). 

Chego mesmo a tempo. Um abraço e um mimo. Relatos e sons: já não há silêncio. Ouço. Sinto. Estudamos e contamos,  dividimos e multiplicamos: as palavras, sempre!
Fogão, dieta, água. Sofá. Um abraço. Boa noite. Sono: muito. Cansaço. Amor. Feliz.

E é só. E é tudo. Tudo.

Mas todos os factos têm duas versões.