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quinta-feira, 20 de outubro de 2016

História de uma bota esquecida

Nasci num grande armazém, felizmente num país de grande tradição na indústria do calçado e, por isso, fui muito bem feita. Aos acabamentos foi dado o mesmo nível de atenção e cuidado do que à base e esqueleto, por assim dizer. Sou feita da melhor pele, com as melhores colas e tenho a sorte de ser cosida em grande parte do meu corpo, o que me dá uma segurança enorme.
Quando fiquei, finalmente, pronta encontrei o amor da minha vida, ou, por outras palavras, o meu par. Era belíssimo, um espelho perfeito de mim de todos os pontos de vista e perspetivas. Não havia par melhor no mundo: felizes, abraçado em concha, iniciámos a vida numa caixa devidamente forrada muito confortável. Como se quer, passamos os primeiros dias da nossa existência assim, protegidos do mundo num sono ligeiramente embalado. 
Não foi de admirar que nos tenham escolhido, chegados que éramos à loja, para habitarmos a montra mais bem decorada de todo o centro comercial. A etiqueta que nos apresentava refletia e anunciava, sem sombra de dúvidas, toda a nossa qualidade. Ali estivemos talvez umas duas semanas, exibindo costuras e recortes. Até o dia em que as conversas se centraram em nós. Havia só um, éramos par único. 
Mantivemo-nos unidos até na hora de nos experimentarem: o par ficava-lhe mesmo bem. E os sorrisos que vinham lá de cima eram mesmo o reflexo de toda a nossa beleza. Fomos comprados! E viajámos. Voltámos à caixa apenas por breves instantes, pois, nessa noite, começou o nosso trabalho. Nos pés dela éramos a estrela da noite. 
Porém, parece verdade que os maiores têm sempre os piores destinos e o meu não poderia ser pior. A festa prolongou-se até tarde. Penso que havia até já alguns raios de luz quando voltámos ao carro, desejando já o descanso merecido. Tinha sido uma noite gloriosa - até ali -, tínhamos sido centro das atenções e alvo dos maiores e melhores elogios. E ainda bem, porque seriam os únicos e finais. Repousámos um pouco no carro, ainda nos pés, e havia sono e cansaço à mistura. 
Foi então que do iminente sono fomos levados para o tumulto geral e incompreensível. Umas luzes demasiado próximas, sons agudos e sons mais graves, o metal a ceder, e a tontura da queda. Um acidente: um tumulto final. A ambulância e o choro, a rapidez na urgência das ações e o fim.
Largada na beira da estrada: uma valeta central sem hipótese de salvamento. Arrancada até do amor da minha vida que, na confusão, saltou o separador central e aterrou, abandonado, na faixa contrária.
Aqui estou desde então, uns seis meses terão talvez passado: não vivo nem corro. Exibo-me sozinha a todas as horas do dia, perdida sem saber o que me acontecerá. Nada. O vazio, a solidão, a inutilidade. Apenas uma bota na berma da estrada.

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