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quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Balança, resvala, cai e levanta

Costumo dizer que não gosto dos anos ímpares e, de facto, 2015 foi um ano de muitos suores frios. Tanto a nível pessoal, como profissional houve dois ou três grandes acontecimentos que me trouxeram lágrimas agudas de dor, incredulidade e tristeza. Contudo, no conjuntos dos 365 dias o balanço foi, sem dúvida, extremamente positivo. 
Não consigo nem quero expor aqui os yins e yangs deste ano, mas sublinho os meses que passei numa escola onde fui realmente feliz, onde encontrei, reencontrei e conheci gente que me faz bem, onde consegui trabalhar e dar um bocadinho mais de mim do que o costume.
Permaneceram as amizades fortes e as partilhas inesquecíveis e se algumas parecem mais lassas, podem estar assim apenas temporariamente. 
A um terço do caminho houve quedas que já não doem e que trouxeram consequências positivas; no fim do segundo terço foi o trambolhão profissional que me obrigou a ver o mundo de forma muito diferente. Até porque quando há menos dinheiro, o mundo fica realmente diferente... Talvez dê para perceber que não preciso de tanto e que tenho, afinal, tudo além dele que me faz verdadeiramente feliz.
O mundo, lá fora e cá dentro, andou às avessas e parece não querer endireitar-se: pode ser o vento norte que sempre traz tumulto e esperança - assim espero.

Já os anos pares, no geral, costumam ser bem mais divertidos: há grandes animações desportivas, para começar; mas alguns terminados em 6 têm um lugar especial no meu coração - 1976 e 2006! E por isso, este ano, vou dar-me ao luxo de ter muitas expectativas positivas. Há processos e petições para resolver, há muitos livros para ler, cursos para terminar, projetos para concretizar, alegrias para viver e muito amor para distribuir.

Este foi duro, mas está a terminar e, devo acrescentar, da melhor forma: às vezes ser o plano B sabe ainda mehor do que ser o plano A. 

Obrigada a todos os que me acompanham nas leituras e escritas e desejo a todos Saúde.

Venha ele!

domingo, 27 de dezembro de 2015

Carta a David - O Guardião do Silêncio

Junto ao mar, 27 dezembro 2015
David, 
gostava de te ter encontrado, de poder conhecer o teu recanto de tesouros muito quietos e de te convidar a vires conhecer o meu. Há pessoas que encontram no carinho de um animal de estimação o prazer de chegar a casa e não entendem como eu, exatamente da mesma forma, o encontro nas minhas prateleiras: como se um grupo silencioso de amigos estivesse sempre aqui incondicionalmente à minha espera, como tu dizes, à espera do afago das minhas mãos. É essa vontade que tenho sempre que entro no meu forte: acariciar cada uma daquelas personagens que conheci e ansiosa por encontrar as outras a quem ainda não tive tempo de me apresentar.
Os meus livros são os meus companheiros - a única certeza de que nunca estarei só -, mas, ao contrário de ti, não desprezo os livros novos, não os acho apenas papéis pintados com tinta, frios e sem mistérios, acho-os precisamente mistérios provocadores à espera de serem arrefecidos. Sinto, perdoa-me a hipérbole, um prazer sexual ao abrir um livro pela primeira vez; indescritível a sensação de percorrer todos os seus cantos virgens com os meus dedos, de lhes soltar os silêncios das palavras, de lhes provocar as primeiras cicatrizes (o canto da página 84, por exemplo, onde esbarrei em mim dentro de ti). Gosto e tenho de os consumir a cada leitura - não espreito para os livros, possuo-os, marco-os, abro-os, leio-os. Como pode um livro chegar à última página sem a marca de quem os leu? É como passar pela vida sem que alguém se lembre de nós, tentando ser discretos para não incomodarmos - isso não é viver, aquilo não é ler.
Por isto mesmo, David, entendo tão bem o valor acrescentado de um livro usado. Além de poder comprar mais por muito menos, também eu me emociono na expectativa do que vou encontrar para além da certeza das palavras. Acumulo na caixa das surpresas uma palheta talvez dum músico esquecido, um convite para uma festa memorável da qual não tenho fotografias, anotações sobre filmes que eu já vi, e nunca esqueço o cheiro que trazem da casa de onde foram expulsos, a dedicatória que ainda não consegui decifrar ou as anotações e dúvidas expressas discretamente a lápis. E imagino o que pensará um dia quem encontrar o meu rasto. 
Também não consigo compreender quem se desfaz deles, como se estivessem a mais, como se não pertencessem ao lar. Não entendo, porque não esqueço: o meu Ensaio sobre a Cegueira que nunca mais voltou para casa, o meu The French Lieutenant's Woman a quem perdi o rasto, o meu Regresso que demora em regressar, o meu Os Meus Problemas deixado imperdoavelmente num autocarro da Rodonorte, ou o meu Os Anagramas de Varsóvia que só saiu há uns dias e de quem já tenho saudades.
Os livros usados trazem sempre mais histórias, ainda mais silenciosas do que as outras e por isso mesmo te resolvi escrever. São eles que verdadeiramente guardam o silêncio das palavras sem fim, das que estão escritas e que nunca podem ser completamente lidas e das que transportam como que apêndices escondidos em esperas intermináveis. Todos esperamos sempre algo que nunca virá e só quando sabemos compreender essa espera no silêncio das palavras que viajam sabemos realmente viver.

Contigo na espera,
Fi

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Uma missão muito especial


Ontem à noite, estava eu no meu quarto, quando ouvi um grande estrondo. Fiquei assustada porque parecia que alguém tinha caído lá fora e, por isso, fui até à janela do meu quarto. Abri a persiana e fiquei a olhar para todo o lado a ver se percebia o que tinha acontecido. Ao fundo da rua vi uma coisa extraordinária: pensei que não estava a ver bem e decidi esfregar os olhos. Quando os abri novamente, confirmei o que já tinha visto antes: era o trenó do Pai Natal todo espatifado no meio da estrada! Ao lado, a tentar-se levantar, estava o próprio Pai Natal! Vesti o meu robe com muita rapidez e desatei a correr para o ir ajudar.
Quando cheguei lá, ele já estava de pé, a tentar equilibrar-se e a sacudir a sujidade do seu fato. As prendas, que tinham caído do trenó, estavam todas espalhadas pela rua - fiquei tão preocupada. 
- Então, Pai Natal, o que te aconteceu?? - perguntei eu muito curiosa. - Estás bem??
O Pai Natal explicou-me que uma das suas renas estava mal disposta e ao contornar uma das nuvens, despistou-se e o trenó caiu desgovernado no chão. As renas puseram-se a fugir, assustadas, e ele tinha ficado ali, caído, desamparado, triste e desorientado. Não sabia o que havia de fazer com tanta prenda espalhada pelo chão e, pior, sem renas, não poderia ir distribuí-las por todos os meninos do mundo.
Foi então que me lembrei da conversa que eu tinha tido com a minha avó, e achei que podia ajudar o Pai Natal. A minha avó tinha-me contado que, quando ela era pequenina, não era o Pai Natal a distribuir presentes por todos os meninos, era o menino Jesus. As crianças tinham que deixar uma bota ou uma meia debaixo da chaminé e o menino Jesus, durante a noite, levava presentes a todos os que se tivessem portado bem. Eu até achava muito bem, afinal era o aniversário do menino Jesus, a noite de Natal era a noite em que ele tinha nascido. 
O Pai Natal explicou-me que há uns anos atrás, quando os meninos começaram a pedir prendas muito grandes, ele tinha começado a ajudar o menino Jesus, pois tinha um trenó onde as podia levar com mais facilidade. Mas, agora, não sabia o que fazer: tinha começado a tratar de tudo sozinho e nunca mais tinha visto o menino Jesus, nem sabia como havia de o contactar e perguntou-me se eu o poderia ajudar.
- Claro que sim! - respondi-lhe eu com toda a certeza. - O menino Jesus está dentro do nosso coração e para falarmos com ele só precisamos de falar com a linguagem do amor.
O Pai Natal estava a ficar um pouco confuso e eu clarifiquei o assunto:
- Quando rezamos, em voz alta ou só dentro da nossa cabeça, estamos a usar a linguagem do amor e o menino Jesus ouve sempre o que nós dizemos. Foi assim que a minha avó me explicou.
Ainda assim, o Pai Natal estava preocupado, porque já faltava muito pouco para a noite de Natal e não sabia se daria tempo para avisarmos o menino Jesus. Então, eu disse-lhe que hoje estaria com muitos meninos e muitos adultos e que isso seria o suficiente para conseguirmos falar com o  menino Jesus.
O Pai Natal concordou e agradeceu-me a ajuda. Apanhou o autocarro, que ia mesmo a passar naquele momento, e foi-se embora.
Por isso, hoje, tenho esta missão muito especial: venho pedir-vos que, este ano, usem todos a linguagem do amor para pedirmos ao menino Jesus as prendinhas para todo o mundo. E como o menino Jesus não tem trenó, não vamos pedir prendas muito grandes, em vez disso vamos pedir paz, amor e muita saúde para o mundo inteiro.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Ela e ela

Conheceram-se talvez há muitos anos, mas não se lembravam.
Um dia, há tão pouco tempo, foram apresentadas num momento banal, daqueles de que nenhuma história se ocupa durante muito tempo.
Ela estava nervosa e mais nervosa ficou.
A outra estava ansiosa, mas feliz.
Concordaram no diálogo que iniciaram e complementaram-se a nível institucional.
O diálogo estendeu-se a conversas sem fim.
Na diferença encontraram partilhas.
Uma ensinou a outra a refletir e a agradecer.
A outra ensinou-a a sorrir e a amar.
Quando perceberam estavam próximas e prontas a continuar.

E agora? No ponto e vírgula instalado, a outra perdeu-se.
A outra pede-lhe que fique, se puder escolher.
Ela vai ficar: de qualquer forma ela vai ficar.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Tristeza

Ontem, senti-me enredada na tristeza, como se fosse um conjunto de braços extensíveis, cobertos de tentáculos, que não me soltaram durante todo o dia. Para onde quer que olhasse, mesmo que tentasse não ver, sentia-a nas palavras, nos sons, nas imagens, na pele.
À noite, tentei encontrar alguma claridade, mas a tristeza só começou a desvanecer nas lágrimas que me vi obrigada a aceitar.
Por um lado, percebi que a tristeza se encontra na pureza dos sentimentos, que sem essa pureza era impossível senti-la assim no aperto da respiração. Recordei momentos de partilha e descoberta que me abriram a porta para poder agora sentir esta tristeza. Partilho da opinião daqueles que consideram que tudo na vida tem um propósito, que todos temos uma missão e eu não consigo parar de refletir sobre a minha. Acho que a cumpri, mas não tenho a certeza de já a ter terminado. Estou confusa e com medo.
Por outro lado, aprendi que a tristeza é universal, que brota da crueldade do homem pecisamente na mesma proporção. Aprendi que o sangue derramado numa calçada é impossível de ser lavado, que as marcas da vida ficam mesmo para além da morte, e que todos vamos sempre regressar a casa. Sentir-me perto dos que estão longe é a magia da literatura.
Na verdade, não aprendi nada disto. Relembrei. Parei um dia para sufocar na tristeza. E agora guardo-a numa bolsinha que encosto à pele e vivo.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Coisa rara


Coisa rara: o dia estava mesmo a correr bem – chegara a tempo para o almoço com a melhor amiga –, mesmo depois de ter interrompido a marcha rápida para ver uma gaivota tão gulosa como ela própria. Parara a meio do caminho para a observar – branca, cinzenta e sempre alerta –, admirou-a e só depois seguiu para o carro estacionado mesmo ali à frente – o que também era coisa rara. Assim, não havia dúvidas: o saldo estava extremamente positivo neste dia – pelo menos nesta primeira parte do dia... Depois da sobremesa – gelado de nata com cobertura de caramelo –, deram um pequeno passeio pelo parque, onde puderam pôr as conversas realmente importantes em dia. Os temas eram claramente inadiáveis – assuntos de urgência, digamos, feminina; questões de brilho ou opacidade – também o poderíamos dizer assim. O cabelo da Rosa estava a ficar mortiço, sem vida, como que a precisar de um sopro de juventude. Maria, por sua vez, tinha encontrado a fórmula ideal para o rejuvenescimento capilar: mel, azeite e apenas umas gotinhas de sumo de limão – verdadeiro! E durante a partilha absolutamente fundamental e imprescindível, eis que uma gaivota, sobrevoando o parque que dava mesmo de frente para a linha de mar, alivia um elixir muito pouco milagroso que aterra, certeiro e impiedosamente, nos cabelos mortiços e baços de Rosa e nos esplendorosamente nutridos de Maria. 

(Receitas e acontecimentos ficcionados!)

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Memórias - Erasmus

Eu tinha 20 anos. Estava em Londres, longe do meu ninho, cheia de garra e valentia, mas intimidada com a minha própria coragem. Lembro-me de olhar o mapa várias vezes e analisar cuidadosamente a distância a que estava de casa. Embora o meu lar já não fosse o dos pais - tinha voado um pouco -, ainda assim havia uma ausência que não se podia apagar tão depressa como antes. Era jovem, sei agora que era, realmente, muito jovem. Havia tanto para aprender, para conhecer, para experimentar: é isso a juventude - o início de todas as experiências adultas.
Tinha conseguido alugar um quarto, num bairro no norte de Londres, e toda a casa e suas características me pareciam extremamente estrangeiras. Não podíamos andar calçados lá dentro, havia uma chave para ativar a eletricidade, não existia bidé na casa de banho... Um grill estava no lugar do exaustor e deste, inexistente, não senti falta. A cama tinha uma cabeceira amovível e a claridade escondia-se com uma cortina, apenas. Sem persiana, a janela parecia-me sempre aberta! Era apenas uma casa, contudo, havia que reaprender a conhecer uma casa. 
Em nenhum momento me senti arrependida e as diferenças excitavam-me os sentidos. Na primeira noite, ao passar Picadilly Circus, pensei que estava num filme, ou talvez num noticiário do canal 1 (como dizíamos então). Belisquei-me para acreditar que estava ali, a olhar os sinais luminosos todos, e onde encontrei o meu primeiro obstáculo linguístico. Por pouco interessante que possa parecer, ele foi o vinagre. O grupo pedia batatas fritas num cone de papel (tal qual as nossas castanhas!) e queriam saber se eu queria vinegar. Vinegar?? Com a pronúncia londrino-asiática dos meus companheiros, vinegar tornou-se a palavra mais impercetível do mundo - até o ter cheirado e respondido: "Sim! Quer dizer, yes, please!! Vinegar, I love vinegar!" Embora vinagre nas batatas fritas fosse, para mim, uma estreia. 
(continua)

sábado, 21 de novembro de 2015

Família

Não sei se sou de direita, não sei se sou de esquerda - e encontrar esta resposta é algo que não me preocupa mesmo nada. Contudo, conheço-me bem e sei em que acredito. Acredito na honestidade e acima de tudo no amor. Acredito em olhar para o lado e tentar sempre fazer o que é correto. 

Fico feliz pelas alterações que se fizeram ontem à sociedade portuguesa. Tentei até ler as vozes discordantes, mas não consegui (digo-o com toda a honestidade) compreender os seus motivos. Para mim, é um passo tão óbvio que só estranho - e lamento - a demora.

Acreditem no amor, não desconfiem dele. Como a minha mãe me disse tantas vezes: o amor é sempre bonito, tenha a forma que tiver, sendo verdadeiro, é sempre bonito. 

Isto é fazer o que está certo.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O autocarro (fim)

José apoiou as mãos nos joelhos e tentou recuperar o fôlego, enquanto pensava como com uma T-shirt estaria bem mais confortável. Ainda com a respiração acelerada, levantou o olhar e confirmou que o autocarro parara. Havia uma agitação lá ao fundo que não conseguia entender e, por isso, aproximou-se.
Carlos foi o primeiro colega que conseguiu identificar no exterior. Limpava as mãos a algo enquanto conversava com alguém. O carro que tinha apitado ainda há pouco arrancava a toda a velocidade. 
Outros colegas estavam ainda a sair do autocarro, e havia um burburinho constante mas pouco sonoro. José chegou finalmente perto deles: o seu olhar fazia todas as perguntas que não precisavam de verbalizações. Rita, a delegada da turma dele, aproximou-se e explicou.
Ao fim da tarde, ao chegar a casa, embora começasse já a agradecer a quentura da sweat, disse à mãe:
- Amanhã, levo uma t-shirt!
- Boa tarde! - replicou a mãe, colocando em evidência a indelicadeza do filho.
- Desculpa, mãe. Olá! Mas amanhã levo mesmo uma T-shirt!
- Então? Tiveste muito calor? Olha que agora ao fim do dia já sabe bem uma camisola mais quentinha. Não quero que fiques doente.
- Melhor doente do que com a cabeça rachada!
- O quê?!
Lucas vinha dentro do autocarro, nas últimas filas. Estava muito sol, o calor triplicava lá dentro. Farto de se sentir desconfortável, levantou-se e começou a tirar a camisola quente que trazia vestida, mas enquanto a fazia passar pela cabeça, um movimento do autocarro provocou-lhe desequilíbrio. Caiu para o corredor do autocarro, bateu com a cabeça no banco do lado de lá, raspou o peito descoberto contra o repouso de braços, muito danificado, do seu banco. Havia sangue a escorrer pela barriga, sangue a jorrar pelo nariz, um lanho visivelmente profundo no rosto. Carlos correu a levantá-lo, num movimento automático. As raparigas gritavam, pedindo socorro e o motorista, que se preparava para os deixar na paragem da escola, olhou pelo retrovisor e acelerou com um novo destino: hospital.
- Então por que parou no fim da avenida? - perguntou a mãe, já arrependida de ter guardado as T-shirts no armário mais alto do sótão.
- A Maria estava ao telefone com a mãe, que seguia no carro, uns metros atrás do autocarro. Em direto foi ouvindo a descrição. Contou-a ao marido que estava a conduzir. Apitaram para que o autocarro parasse. Pegaram no Lucas e levaram-no para o hospital.
- Ele está bem?
- Ainda internado em observações, por causa da pancada na cabeça. Mas parece que sim.
- E a tua mochila? Que aconteceu?
- Quando eu ia a correr e me livrei do peso dela, aterrou no lago da avenida... 

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

O autocarro (parte 1)

Estava um excelente exemplo do que é o verão de S. Martinho. Na verdade, ele não queria sentir aquele calor todo; afinal, a mãe já lhe tinha arrumado as T-shirts todas de manga curta e a sweat mais fina que tinha escolhido para hoje, era, ainda assim, muito quente. 
- Eu bem disse à mãe que ainda era cedo para fazer a troca das roupas, mas não adiantou nada. Agora estou aqui a morrer de calor.
Na paragem do autocarro sempre estava mais fresquinho: a sombra portegia-o do sol e a brisa que passava dava para aliviar um pouco a temperatura. Deixou-se ficar ali. Os colegas de turma acabariam por chegar no autocarro das 14h e só depois seguiriam para as aulas da tarde.
Morar perto da escola tinha as suas vantagens, embora os relatos das viagens de autocarro pelos colegas o fizessem desejar, secretamente, morar um pouco mais longe. 
Estava quase na hora; sentia-se, finalmente, mais fresquinho. Ao longe, viu aproximar-se o autocarro: levantou-se, adotou uma postura que lhe desse um ar mais cool - encostando-se displicentemente contra a lateral da paragem, com a mochila pendurada num ombro só -, verificou que o cap estava bem posicionado (ligeiramente desencaixado da cabeça) e cravou o olhar no autocarro que pararia dentro de uns segundos. 
O veículo, de facto, abrandou; as cabeças lá dentro começaram a tornar-se rostos conhecidos, mas não parou. José viu alguns dos amigos, mas em vez de lhe corresponderem o sorriso, mostraram expressões que ele não conseguiu, no primeiro segundo, decifrar - não o cumprimentaram, tinham os olhos esbugalhados, e enquanto uns passavam as mãos pelo cabelo, outros tapavam os olhos com as mãos. Percebendo que o autocarro não parava, José abandonou a pose ensaiada e caminhou em direção ao autocarro - na traseira estava Carlos, seu colega de turma, com as mãos ensaguentadas escorregando pelo vidro. 
Nesse instante, o autocarro acelerou.
- Sangue? Aquilo era sangue? Não parou?
As perguntas acompanhavam o movimento de um lado para o outro do pescoço. Procurava alguém, mas não havia vivalma àquela hora na rua. Estava sozinho e não podia ficar ali parado. Começou a correr, e o calor estava cada vez mais insuportável. As gotas de suor turvavam-lhe a visão, mas na avenida deserta ainda conseguia ver o autocarro. Atirou a mochila para o passeio e tentou apressar a corrida. A sweat era quente de mais. Arfava e limpava o suor das sobrancelhas. Estava a perdê-lo de vista e começou a chorar.
Um carro ultrapassou-o. Apitou veementemente. O autocarro parou.
(Continua)
                                    

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Caminho

Ontem, a minha filha contou-me, durante a viagem de carro até casa, um episódio da escola que a havia deixado feliz. Estava a pequena tão entusiasmada que até eu fiquei ansiosa por saber o que tinha acontecido.
No final do teste de matemática, algumas meninas conversavam sobre os resultados de uns algoritmos e chegaram à conclusão de que nem todas haviam encontrado o mesmo número. Uma delas, a que tinha o resultado diferente, gabava-se de ter a certeza da sua resposta, menosprezando (pelo menos foi assim que as outras sentiram) o raciocínio das colegas.
O acontecimento provocou algum desconforto e, durante o almoço, não se sentaram juntas. A menina que almoçou sem as amigas do costume sentiu-se triste, e recolheu-se na sala de aula a chorar. Apesar dos esforços da auxiliar, ela não parava de chorar nem revelava a razão de tamanha tristeza. As amigas aperceberam-se e sentaram-se com a amiga, perguntando o que se passava. Ainda assim, ela recusava-se a falar, embora as amigas soubessem que, muito provavelmente, elas seriam a causa de tanta choradeira. Por isso, tentaram explicar que não tinham gostado da atitude dela, ao mostrar-se superior, mas que isso não queria dizer que não gostavam dela. Em vão. A menina queria ir para casa, estava desiludida, sentia-se traída. A sua melhor amiga estava entre elas - era o que mais a magoava.
A minha filha pediu, então, que todos se retirassem, até a auxiliar que continuava a tentar consolar a pequena. A minha achava que conseguiria animá-la e até fazê-la desabafar acerca do que a deixava assim tão triste, e essa certeza vinha-lhe de episódios similares no passado.
Começou por tentar diverti-la com algumas graçolas, mas a paciente estava firme na sua dor. Então, não havia outro remédio: enfrentar o elefante branco. E  disse-lhe que não gostaram daquela arrogância dela, que isso não as fazia sentir bem, que tinham ficado tristes com ela, que, às vezes, sentiam que não podiam confiar nela. Além do mais, nem sempre se sentavam juntas na cantina, por isso não havia razão para tanta choradeira. Entretanto, a minha acrescentou que o que ela realmente gostava era que todos se dessem bem na turma, que fossem unidos e não se zangassem como, por vezes, acontecia. Disto isto, emocionou-se também e acabou por se juntar à colega no derramar de lágrimas. Reconhecendo a comicidade da emoção, ria e chorava e isso, agora sim, conseguiu contagiar a outra. Terminaram a conversa a rir, falando de como era exagerada tanta tristeza e as fontes secaram. 
Nas palavras da minha filha, eliminar a tristeza dos outros é o seu grande dom. É assim como um dois em um: além de fazer com que os outros se sintam melhor, ela sente-se bem no processo. E, por isso, perguntou:
- Mamã, qual é a profissão que eu posso vir a ter em que seja essa a minha função: ajudar os outros, conversar com os outros...?
Respondi-lhe com várias opções, porque a vida, aos 9 anos, é mesmo isso: uma imensidão de possibilidades. 
- Estou tão feliz, mamã.
- E eu estou tão orgulhosa, meu amor.
Às vezes, tudo é tão simples.

domingo, 18 de outubro de 2015

A alma

O mundo parece-me, às vezes, andar ao contrário: há os que defendem os animais como se valessem mais do que as pessoas; os que vão ajudar uns que estão longe por acharem, talvez, que por aqui ninguém o mereça tanto; os que se degladiam em volta de resultados eleitorais como se pudesse haver apenas uma interpretação dos mesmos; há os que lutam por subsídios como se viver à custa deles fosse um direito que todos temos de usufruir; os que acham que saber de cor o "Pai Nosso" é saber orar; há muitas coisas ao contrário neste mundo. Estão ao contrário daquilo que me ensinaram, daquilo que aprendi, daquilo que descobri, daquilo que eu sinto.
Mas não desanimo, porque também há muitas coisas certas neste mundo: os que acreditam nas pessoas e nos sentimentos, na verdade da pele e do coração. Uma mistura entre honestidade e humildade que só pode resultar em compreensão.
Passo a semana inteira a encontrar as peças viradas do avesso, a lutar para as endireitar, a escolher seguir de pé para que isso sirva de modelo a quem possa não saber caminhar. Cansa e desgasta, e às vezes não tenho força para me erguer, e paro.
E depois vem o fim de semana - o tempo de ter ou ver só o que está encaixadinho: os afetos, os amores, as saudades, os sorrisos... Um abraço que só transmite calor, mesmo estando assim tão constipada. Uma gargalhada que faz doer abdominais. Uma selfie tirada para o coração. Uma música que nos leva para o reino da perfeição. Um conjunto de tonterias que nos trazem a leveza da tranquilidade. Um amo-te ao acordar. Paz. Verdade. Isso nunca está ao contrário.
Eu só queria dizer que não está fácil, que os dias se sucedem em durezas difíceis de disfarçar, de aceitar, de compreender, de contornar, mas que, ainda assim, tudo vale a pena se a alma estiver cheiinha! E a minha está a transbordar.



 

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

A viagem (iii)


             Luísa achou piada à minha resposta e quis saber mais da minha história. Estava em Milão, infiltrada num grupo de pessoas que desconhecia, dirigia-me para Timor via Doha e Singapura e eles para o Sri Lanka via Doha e pensei Porque não?
            A professora de Educação Física, como se apresentou, encantou-se com os meus 25 anos repletos de esperança e alegria e com o meu relato. Foi fazendo as perguntas certas e teve de mim sinceridade por, de repente, sentir que talvez precisasse de uma segunda opinião. Acabei por lhe contar, com alguns detalhes, os últimos dois anos da minha vida - começando pelo acidente de mota.
         Assim que embarcámos, terminei de descrever os dois meses internada pelos múltiplos traumatismos que sofri. Depois de nos rirmos com as dores que partilhávamos com as alterações do tempo, ela passou a mão no meu rosto e enterneceu o olhar quando me disse:
            -         Ainda bem que não ficaram mazelas. É jovem. Tem a vida pela frente.
         Ouvi a frase ainda mais essa vez e, como das outras, pensei na vida que aí viria. Sentámo-nos lado a lado no avião e preparámo-nos para as 8 horas de viagem: tirei o casaco, descalcei as sapatilhas, agradeci a manta e as meias, tirei o livro da mala e arrumei-a por baixo do meu acento.
         Assim que iniciou a marcha de preparação para a descolagem, Luísa agarrou na minha mão e eu senti que ela suava ligeiramente.
Vai correr tudo bem! - e de repente pensei se estaria a falar com ela ou comigo mesma.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A varanda (iii)

Ana não queria acreditar no que ouvira: a ligação entre as suas cuecas e a T-shirt do moço parecia-lha completamente absurda. Olhou para Pedro, baixou o olhar ao peito dele, voltou a encará-lo, inspirou fundo e disse:
- De facto!
De facto?? De facto?? Enlouqueci, só pode!
O silêncio que se instalou foi especialmente apreciado pelo sr. Alberto que precisava de alguma concentração para descobrir como solucionar definitivamente o problema da velha e pesada persiana.
- Menina, isto não está bonito. - informou calmamente o proprietário. - Vou precisar de desmontar o caixilho superior, endireitar as calhas, substituir as lâminas danificadas...
Pedro, parecendo ainda procurar o tal som que pensava ouvir, sorriu.
- Precisa de mim, sr. Alberto?
- Não, obrigado. Mas isto só fica pronto ao fim da tarde, menina.
O suspiro de Ana acompanhou o baixar dos ombros. Estava o dia perdido, assim parecia.
- Não posso oferecer-lhe outro quarto, que estão todos ocupados, mas prometo que serei rápido. Antes do jantar isto fica prontinho. É só aproveitar bem a tarde. E é o que a menina podia fazer: aproveitar bem o dia bonito que está lá fora, dar um passeio, conhecer as redondezas. Sempre será melhor do que ficar aqui enfiada no meio dos papéis. - sugeriu, olhando a secretária.
Ana seguiu-lhe o olhar: encarou os papéis, pensou na manhã subaproveitada e na tarde completamente perdida. Aceitou-as. Inspirou ainda possuída pela loucura do "de facto".
- Pedro, não é? - perguntou ela, virando-se para o rapaz.
- Sim, sim. - respondeu como se confrontado por algum general.
- Muito bem, Pedro, parece que não vou trabalhar muito durante a tarde. Mas para já, julgo que já merecemos um almoço. Posso agradecer-lhe a ajuda, convidando-o para almoçar comigo?
E lá vinha o tal som, saído não sei de onde, baixinho, baixinho; e o aroma... Sorrindo apenas com o olhar, pousou a ferramenta que ainda segurava com vigor e sugeriu:
- No bar da praia, o prato do dia é peixe vermelho no forno!
As gargalhadas soltaram-se e, finalmente, a atmosfera cresceu, como se avançasse a varanda e se estendesse pelo campo de erva já pouco verde.
- Adequado! Vamos lá então.
Só o sr. Alberto, confundido com tanta risada, ficou sem perceber a piada do peixe vermelho.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Solidão

Um silêncio. Apenas isso: um silêncio.
Vontade de parar, apenas um pouco; como se viver pudesse ter vários andamentos e escolher agora viver devagar.
Parar na escuridão do silêncio. Apenas isso: a escuridão do silêncio.
Acreditar no silêncio, sem temer as palavras.
O silêncio da página em branco. Apenas isso: um silêncio branco.
Encontrar a verdade do silêncio.
Descobrir a solidão e amar.
E chorar.

A viagem (ii)


 Era dia 13, mas não era sexta-feira; escapara por um dia às previsões negativas dos supersticiosos.
  O voo foi calmo e breve, tempo apenas para um bife (ao pequeno almoço!) com ovos e um sumo de laranja. Aterrámos em Milão por volta das nove da manhã e foi fácil encontrar uma sala para fumar o primeiro cigarro do dia e apreciar o ambiente. Havia tempo para o próximo voo, mas muitos obstáculos para ultrapassar. Os passageiros e bagagens atropelavam-se nos corredores estreitos e antigos, os funcionários do aeroporto falavam alto, mais entre si do que com os viajantes, e gesticulavam para nós. Ganhei coragem e avancei para a multidão; dirigi-me a um posto, perguntando onde era o portão de embarque para Doha. Mostrei o meu bilhete e como resposta obtive:
- Mara! Bella ragazza, Mara! – completou com gestos que me apontaram numa determinada direção que segui sem mais questões. Desemboquei num grupo de conterrâneos que prontamente me ofereceu auxílio: o agente turístico deles trataria do meu check in. Tomei um capuccino e um cornetto – para não dizer croissant, já que não estava em França – e descobri que o grupo se dirigia para o Sri Lanka; a minha surpresa não foi maior do que a deles quando anunciei o meu destino: Timor.
-         Sozinha? - perguntou uma senhora com cerca de 50 anos, de sapatilhas e casaco polar, cabelo pelos ombros castanho e máquina fotográfica à cinta.
-         Sim. - sorri. - Há alguém que me espera lá. - descansei-a.
-         É preciso coragem. - comentou.
-         Ou muito amor. - completei.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Solo

É indiscutível a relação entre o ser humano e as artes; há qualquer coisa nas várias artes que não deixa os espíritos indiferentes, ainda que diferentes expressões tenham diversas receções e não se possa, por isso, estabelecer ligações de causa efeito exatas nestas matérias. É pena!
Ontem, ouvi, pela primeira vez, o recente álbum Solo do maestro e compositor Rui Massena. Não foi surpreendente a experiência, mas superou largamente as expectativas que já eram, por si só, bastante altas. O som do piano sempre me fascinou, mas nem todas as composições em piano me fascinam. Estas sim. Muito. Há, para mim, uma transmissão de paz que é avassaladora. Mas fico triste por, como referi, este efeito não se concretizar em todos os espíritos. Neste caso, seria admirável encontrar assim a paz no mundo - a desejar que seja em grande. Os líderes mundiais ouviam D-Day e as guerras terminavam, os povos ouviam Porque Não? e uniam-se em valores fraternos.
Aqui por perto, há umas vozes que se elevam em raiva, violência e desrespeito - eu não estava habituada -, e descobri que me deixam inquieta. O som da agressividade revolta-me, desassossega-me. É essencialmente triste. Achei que aumentar o volume do meu som (Solo) poderia contagiar de paz essas vozes. Não. Como disse: é pena!

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Defecar

As novas tecnologias estão cada vez mais preocupadas com o nosso planeta, ou pelo menos é bonito acreditarmos nisto. Depois de tanto andarmos para aqui a destruir, fazemos uma espécie de catarse de cada vez que ligamos uma luz LED ou usamos um carro movido a eletricidade (isto é mais um desejo do que uma realidade - experimentei e gostei). Sentimo-nos inteligentes por sermos capazes de evoluir respeitando o ambiente: fazemos reciclagem e sorrimos, comemos brócolos biológicos e inchamos de vaidade, não bebemos leite de vaca e consideramo-nos superiores, e por aí além. Garantimos - especialmente a nós mesmos - que somos seres evoluídos e que já nem nos passa pela cabeça deixar a torneira aberta quando escovamos os dentes - e eu acho isto tudo muito bem. Tarde, mal, pouco, quase nada, mas ainda assim melhor do que involução total.
Contudo, apresso-me a confessar: há tecnologias amigas do ambiente que são extremamente desagradáveis. Isto de defecar em casas de banho públicas (especialmente em bares e restaurantes) às escuras não pode, certamente, ser considerado evidência de evolução humana. Já é incómodo fazê-lo à caçador - doem as pernas, os músculos tremem, é cruciante -; e nem pensar em não ser assim (ouço logo a advertência aterradora da minha mãe na memória NÃO TE SENTES!), e ainda por cima fico às escuras depois de uns segundos a tentar equilibrar o rabo no ar?!
Não gosto! Perdoe-me o planeta, mas isto assim também já é de mais! Ou então (reparem bem no rasgo de inteligência que evidencio), podiam colocar o sensor alinhado com as nádegas! Assim, bastaria abanar ao de leve o traseiro e não seria preciso levantar o rabo (movimento muito perigoso), agitando os braços, para ligar de novo a luz! Boa, senhores engenheiros?


P.S. Vá-se lá saber por que escolhi este tema em dia de publicação de listas de colocação de professores.

domingo, 23 de agosto de 2015

The Green Mile

Este é o título do meu filme preferido de todos os tempos. Ao contrário do que normalmente acontece, só agora, muitos anos depois de ter visto o filme, li o livro. Já sabemos como é muito mais enriquecedora a experiência da leitura em relação ao filme, mas não é isso que me importa agora. Até porque, apesar de faltarem algumas partes na produção para cinema, o importante está lá. E o importante é, de facto, muito importante.
Talvez seja um amor inexplicável, ou veneração avassaladora, mas há qualquer coisa nesta história que me faz prostrar em admiração: como pode alguém imaginar uma história destas? Como pode Stephen King entrar diretamente na minha alma, nas entranhas de todos os seres humanos, como é possível conhecer assim a essência do que somos - acima de qualquer raça, religião, cultura, nacionalidade?
Lembro-me de ter chorado das, pelo menos duas, vezes que vi o filme, mas as lágrimas foram ainda mais contundentes na página 411 do livro. Não são lágrimas de emoção ou de tristeza, são lágrimas de incredulidade e aceitação, como se aquele narrador tivesse conseguido chegar lá dentro, tocar no botão escondido e desprender tudo aquilo que aprendemos a esconder para conseguirmos viver.
Perco-me nas voltas desta tentativa de explicar o que considero grandioso, apenas porque as palavras nunca são suficientes para explicar o que verdadeiramente sentimos. E aqui não consigo mostrar a pele, a íris, a corrente sanguínea ou o sentir de dentro - e foram estas partes de mim que entenderam, de facto, esta história. 
O bem e o mal, como sempre, mas sublime aqui. O amor que mata e o amor que dá vida. A inevitabilidade da efemeridade. Obrigada, SK.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

A viagem (i)

A noite anterior à partida foi longa. De certo modo, achei que tinha despedidas a fazer: sentei-me no sofá da sala, olhei para a minha vida nos últimos meses e assegurei-me de que tomava a decisão correta. Adormeci.
         Acordei um pouco antes das 5 e tomei um duche. Sem saber muito bem quando poderia repetir o prazer de um banho, demorei-me a sentir a água quente tocar-me a pele. De olhos fechados, vi tudo o que tinha conquistado até chegar a este momento. Vesti uma roupa leve, um casaco quente e carreguei uma mala praticamente vazia. O táxi estava à porta à hora marcada:
-    Bom dia, menina!
-    Bom dia. - respondi sem corresponder ao entusiasmo matutino.
-    Então vamos lá até ao aeroporto.
-    Sim, obrigada.
         O taxista estava bem disposto e com vontade de conversar, mas as minhas respostas curtas desencorajaram-lhe as tentativas. Peguei na pequena mala (que não passou sem um comentário do homem), paguei o percurso e parei defronte da placa PARTIDAS. Ainda era de noite e estava muito frio: avancei para o interior, procurando a porta de embarque. Até o aeroporto estava ainda meio adormecido - as lojas fechadas, as senhoras da limpeza a percorrerem os corredores e passageiros lentos. Só os placardes eletrónicos funcionavam totalmente, sem avisos de atrasos ou cancelamentos.
         Na sala de embarque, surpreendeu-me chamarem por mim antes de abrirem as portas - comunicavam-me que me passariam para primeira classe, caso não me opusesse – claro está –, pois uma família havia solicitado o meu lugar para seguir junta. Ora bem, não começo nada mal. Venham lá as vinte e tal horas de voo.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A varanda (ii)

Ana não conseguia mexer-se; a frescura que procurara na varanda depressa se havia transformado num calor insuportável que lhe incandescia a face. O pequeno grupo de talvez uma dúzia de pessoas balançava entre uma vontade incontrolável de rir e um sentimento de culpa pela mesma. Pedro correu a avisar o sr. Alberto, dono da pensão.
As mãos de Ana continuavam a tentar tapar os seios, não muito volumosos - ao menos isso -, mas ainda assim sentia-se terrivelmente exposta. Virou o corpo ligeiramente de lado, não conseguia enfrentar a plateia, mas revelar a nádega esquerda também não lhe parecia grande evolução da situação.
- Menina, o meu Pedro já foi pedir ajuda, não se preocupe. - soltou a Dona Maria.
- Obrigada, - balbuciou - obrigada.
Lá dentro, o sr. Alberto correu a buscar a mala das ferramentas e dirigiu-se ao 303. Bateu à porta, embora não esperasse uma resposta e, afinal, o cenário temido de surpreender alguém na sua intimidade no quarto estava garantido, só que na varanda. 
Pedro acompanhava o proprietário, apanhou a roupa deixada no chão e, empoleirando-se num banco, fê-la chegar a Ana que a vestiu como se a temperatura tivesse, repentinamente, caído uns 10º.
A persiana estava derreada, deixando um espaço no topo, por onde Ana tentava agora espreitar, tentando ignorar a audiência que, aos poucos, ia perdendo o interesse.
A tarefa foi complicada: pesava realmente muito e estava velha; contudo, o sr. Alberto - homem persistente e experiente (não esquecendo a ajuda do jovem Pedro) - conseguiu retirar as ripas e abrir caminho do quarto para a varanda, ou melhor, da varanda para o quarto. Ana entrou, ainda a tentar esconder partes do corpo que já estavam tapadas, e reclamou com veemência hesitante com o proprietário da pensão, enquanto lhe agradecia também ter solucionado o problema.
Depois encarou Pedro, reconheceu as mãos que lhe haviam chegado a roupa e disse-lhe:
- Obrigada pela ajuda.
Pedro estava parado a olhar para ela, já a tinha visto lá de baixo, após o estrondo, mas eram os olhos dela que o paralisavam. Segurava uma ferramenta qualquer nas mãos, mas não se mexia, estava assustadoramente imóvel.
- Ó Pedro, congelaste, rapaz? - admirou-se o sr. Alberto que até há bem pouco tinha contado com a destreza do moço.
Havia um cheiro no ar, ou a cor dos olhos que lhe parecia diferente das outras, um som quase impercetível... nem Pedro, caso fosse chamado aqui a depor, conseguiria explicar a situação. E por isso se entende que apenas tenha conseguido dizer:
- Já reparou? A minha T-shirt é da mesma cor das suas cuecas!

sábado, 8 de agosto de 2015

Monte Gunung Agung

Não dormi naquela noite. Às seis da manhã, na porta de embarque, a funcionária da TAP perguntou-me se me importava de passar para primeira classe, porque uma família, para seguir junta, precisava do meu lugar. Não me importei, achei que era um bom presságio, mesmo assim, ao longe. Embarquei. Acho que voei mais rápido do que o avião que me levou a Milão. Cheguei lá muito antes de desembarcar. Percorri corredores de um aeroporto antigo e cheio de pessoas tão diferentes. Senti-me grande por ser apenas mais uma ali e nem me importei quando, ao pedir informações, me responderam apenas “Bella ragazza!” Sorri e segui sem saber para onde, mas encontrei um lugar num outro avião que parou num mundo branco, limpo e de extrema organização no Qatar, onde me senti levada ao colo para um outro lugar. Longe da terra, voei até Singapura onde as borboletas me acompanharam numa espécie de banho matinal que me lavou de tudo o que ficara para trás e voltei a descolar.
Aterrei. Percorri corredores de anúncios a casas de sonho e ilhas paradisíacas. Paguei para entrar em Bali e vi-te. O mundo parou e o que estava tão longe passou a tão perto que nem a brisa quente e húmida cabia entre nós. Lembro-me de ver as palmeiras altas que decoravam a receção do hotel sob um céu de estrelas que percorremos uma a uma, juntos. Lembras-te? A pedra da banheira refrescou-nos os corpos incandescentes de amor e tesão e ali, perto de ti, senti-me perto do centro do mundo. Precisei de sair dali e saber-me acordada. Levaste-me pela mão nas ruas com cheiro a incenso e sentaste-me numa mota barulhenta onde me pude abraçar a ti. No cimo do Monte Gunung Agung disseste “Casa comigo.” Juro que senti o vulcão estremecer.


sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Chinelada

Eu não gosto de chinelos!
Para mim, o chinelo é tão antiquado como usar toalhas absorventes durante a menstruação: não faz sentido! A evolução dos pensos e tampões tornou aquele hábito completamente obsoleto, ridículo, incómodo e simplesmente improfícuo. Mas será que ainda passa pela cabeça de alguém usar essas toalhinhas? Nem à minha avó - se ainda cá estivesse e caso estranhamente ainda fosse menstruada.
Pois acho exatamente o mesmo em relação aos chinelos; pior: ainda há uma corrente por aí que os quer fazer passar por item de moda altamente invejado - no caso de serem de uma determinada marca! Nem posso acreditar em tal bujarrona - então um chinelo, de enfiar no dedo (quem sabe martirizando-o permanentemente), a bater impiedosamente no calcanhar que luta por sobreviver, só porque tem lá uma marca específica na tirinha aboleimada, ainda se torna num item chique?!
Não se trata apenas de uma questão de gosto, caros leitores, longe de mim querer diminuir o gosto dos outros sobrevalorizando o meu. Definitivamente, não é nada disso. Usamos calçado para proteger os pés: que nos suportam, que nos ajudam na inevitável e preciosa locomoção; não usamos calçado para prejudicar as nossas bases. O chinelinho de enfiar no dedo (é a esses que me refiro concretamente) bate inexoravelmente no calcanhar, ferindo-o ao estilo "água mole em pedra dura tanto bate até que fura". Ou seja, aos poucos, os calcanhares ressentem-se, ficam doridos, necessitam de uma proteção extra por causa da constante agressão e formam uma camada mais dura de pele (que pode até vir a rachar em virtude de, sendo mais dura, secar mais rapidamente).
Assim, e exposta a verdade científica - podem, sem medo, confrontar os podologistas - devo ainda acrescentar que podem ser usados mas com muita moderação. Exemplo é uma ida rápida à praia, mas que não contemple uma caminhada considerável para lá chegar.
Fora isso, por favor, abstenham-se de tal (não vou adjetivar) hábito.
Claro que até me podem dizer: Então e o mesmo não se aplicará aos stilettos? E eu respondo: E a elegância é comparável?! Por favor...
Também nunca achei muita piada à extrema coerência - é extremamente aborrecida!

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Tarde

Sentada, junto à porta, Carla não sabia o que fazer. Mexia nas pontas do cabelo, enrolava-as repetidamente (havia já um caracol bem definido do lado direito). Olhava a porta fixamente - ainda retumbava na memória o barulho do seu bater violento há quase uma hora atrás. Engolia em seco, tentando controlar as lágrimas que pareciam poder explodir a qualquer momento e voltava a enrolar as pontas do cabelo.
Não podia fingir que não ouvira aquilo. Não podia esquecer as palavras que tanto a magoaram. 
Se ela não entende que me magoou, que faço eu aqui? Que faço eu aqui à espera que a porta se volte a abrir? Vou embora! Tenho que ir embora! Não há outra solução! Prometi a mim mesma que me ia respeitar, que me colocaria sempre em primeiro lugar... Não vou chorar! Então por que raio continuo aqui sentada?
Encheu  o peito de ar, passou as duas mãos pelo cabelo e levantou-se. Tirou os olhos da porta e dirigiu-se ao quarto com passos lentos mas firmes.
Era talvez uma das decisões mais difíceis que tinha de tomar; detestava tomá-las - habituara-se de mais à passividade que Joana lhe incutira - e era assim que se sentia confortável, sem ter de decidir. Estava, por isso, nervosa: tomara a decisão de se levantar, de tirar os olhos da porta, mas não sabia bem o que fazer a seguir.
Abriu hesitantemente as portas do guarda-vestidos e ficou parada a olhar.
Que ridículo! Nem sei ao certo quais destas roupas são realmente minhas!
Os olhos já não brilhavam, os movimentos foram-se tornando cada vez mais rápidos. Tinha duas malas cheias, um caracol a desfazer-se e um sorriso iminente.
A porta abriu-se de repente e ouviu:
- Perdoa-me.
Mas era tarde de mais.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

A Marquise

Se há lugar que guardo no baú mais precioso das memórias é a marquise do apartamento onde nasci e cresci. Ao olhar para trás, parece que era lá que tudo acontecia – as refeições, as conversas da família, os trabalhos de casa, as festas de aniversário, as brincadeiras pelo chão, e mesmo o olhar curioso de uma menina que fitava o mar sem saber o que estaria do outro lado da linha do horizonte.
Lembro-me bem de estar de joelhos em cima de um banco, com os braços pousados no parapeito frio, com os caracóis loiros a esvoaçar, a olhar o infinito e a imaginar que do outro lado do mar deveria haver um mundo espelho, onde uma menina exatamente igual a mim teria os mesmos pensamentos e sentimentos que eu. Talvez tenham sido esses os meus primeiros raciocínios mais elaborados.
Mais tarde, já adolescente, olhava os relâmpagos que caíam no mar e chorava as dores da trovoada que sentia dentro de mim. Escondia o rosto nos caracóis agora menos loiros e lambia as gotas de chuva que se misturavam com as minha próprias lágrimas. Foi na mesa da marquise que escrevi os meus primeiros textos – linhas que se confundiam com versos, palavras que se transformavam em melodias. Foi na marquise que aconteceu o único segredo da minha vida.
Aos dezoito anos, deixei a casa dos meus pais para viver bem longe, mas pensava muitas vezes nas paredes de azulejo azul e do segredo que lá deixara.
Um dia, quando ouvi pela primeira vez passar na rádio uma música que eu compusera tantos anos antes na mesa da marquise, decidi – escrevi num papel branco e liso o segredo que guardava na memória num relato que me fez não raras vezes apertar os olhos de dor e vergonha. Voltei lá, desencaixei parte de um caixilho de alumínio e escondi aí a minha confissão. Talvez um dia alguém a encontre, duvide da narrativa e ligue para o número que deixei no fim, e o meu percurso, até então sereno e impune, chegue ao fim. 


sábado, 1 de agosto de 2015

As palavras que me pediste

Deslizo a mão pelo lençol ainda quente, talvez até um pouco húmido e sinto o cheiro doce e almiscarado do teu corpo: procuro em vão a pele macia que me entregaste e escondo na alvura do algodão o sal da minha tristeza.
Reduzido a mim, recolho ao canto que abandonaste.
Repito as imagens e sons, o arrepio dos sentidos e permaneço imóvel como a vontade de te amar ainda para sempre. Confesso a beleza da tristeza que me provocas...
Talvez um sorriso, talvez uma lágrima, talvez uma memória, talvez uma palavra.
Partiste na certeza de eu não ter encontrado as palavras que me pediste e eu fiquei na incerteza de um dia as encontrar.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

A varanda (i)

Era uma manhã quente de Verão, já passava das 10 e ainda nem sequer tinha saído da cama. Levantou-se. Adivinhava a temperatura pelos raios que se escapavam através das falhas da velha persiana e Ana calculou-lhe o peso pelo tamanho enorme da varanda. Isto, antes do pequeno-almoço, não vai ser nada fácil. Inspirou e agarrou a fita que elevava uma persiana ainda mais pesada do que havia imaginado. Como recompensa, avistou um extenso campo de erva já pouco verde e, ao longe, ainda se conseguia ver o mar. Estava mesmo quente; ficou-se pela varanda a tentar sentir a brisa marítima, mas em vão. 
Depois de um duche curto, vestiu-se e desceu à receção, confirmando que perdera a hora da refeição. Na esplanada da porta ao lado, tomou uma meia de leite direta, comeu uma mariazinha com queijo e prendeu-se na vista da varanda do seu quarto na pensão. Cá de baixo lá para cima, via-se apenas o ondular da cortina e Ana pensou que talvez o quarto já estivesse mais fresco. Acho que agora já vou conseguir trabalhar. Era um dos seus habituais retiros para terminar mais um artigo para a revista da Faculdade. Sozinha, livre, sem horários e só com uma tarefa para cumprir, uma só, para variar. 
Como sempre, as palavras encontravam-se mais harmoniosas nestas fugas, porém o calor teimava em não deixar o quarto e, por isso, foi tirando a blusa e depois até os calções. Ficaram as havaianas a condizer com uma cueca reduzida: Olha se eu em casa poderia trabalhar assim!
Chegava finalmente uma brisa irresistível a cheirar a mar. Protegeu-se na cortina que lhe moldava o corpo e deixou a frescura tocar-lhe a pele pela primeira vez. Assegurando-se de que a rua estava deserta, expô-se premunidamente ao canto mais discreto da sacada. Hummm... Que bom! Apesar do meio do dia, o sol rodara para o lado de lá e não se via diretamente dali. Ouviu um ruído quase crepitante e teve a certeza de serem os seu ossos a receberem a frescura. Porém, era a velha fita a ceder e, sem tempos para remédios, Ana viu a persiana desfazer-se num desmoronar tão repentino como ruidoso. O som chamou a atenção dos que se recolhiam no interior do café ao lado da pensão: Ana e a varanda, uma persiana falecida em muralha constritiva - felizmente as havaianas condiziam com a cueca!

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Efemeridade

Já me tinham falado, mas eu nunca tinha visto: há uma flor que desabrocha pela manhã e murcha ao fim do dia. No dia seguinte, desapareceu. Não é um florzinha singela; é uma flor, com todas as letras, resplandescente de cor e formas e texturas e cheiro. Uma produção incrível para uma exibição pouco superior a 12 horas. É linda e, sem dúvida, corajosa.
Hoje fui, pela última vez, à minha escola. Entrei de nariz empinado, orgulhosa do trabalho que desenvolvi ao longo dos meses deste ano letivo. Caminhei calmamente, de cabeça erguida, passos lentos, suspiros suspensos; havia um cheiro a mar e as gaivotas ocupavam os lugares do costume. Cumprimentei com sorrisos invulgarmente pusilânimes e procurei que não me interrompessem a marcha. Abri o cacifo, recolhi os materiais, observei o espaço vazio e fechei a porta. Rodei a chave para a direita e prostrei-me talvez uns 3 segundos. Não consegui, porém, desencaixar o porta-chaves, muito menos retirar o cartão com o meu nome do mostrador. A chave ficou lá, suspensa e num ligeiro balançar; o meu nome também. Eu não.
Não faz mal: como a flor do dia, eu produzo-me toda para apenas um só ano letivo. Só assim vale a pena. Sei que murcho em agosto, mas isso não me tira o brilho, as cores, os sons, as texturas de todas as pétalas do meu corpo. 




Nota: Os acontecimentos são parcialmente ficcionados. Os sentimentos são todos reais.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Arrumações

É verdade que todos somos únicos. O que pensamos, decidimos, escolhemos, dizemos e fazemos são manifestações dessa singularidade. É impossível haver, no mundo, duas pessoas exatamente iguais: com os mesmos gostos, reações e ações, medos ou preferências. Cultivam-nos a importância da diferença, do livre arbítrio, da liberdade, da independência, ao mesmo tempo que nos empurram para a necessidade básica e inquestionável de pertencermos a um grupo, a um conjunto, de encaixarmos - até no sentido da Malhoa - em alguém. Eu devo confessar que adoro encaixar (em todos os sentidos), adoro pertencer a um grupo, ou melhor, a vários e ter a oportunidade - acho que é essa a razão fundamental - de partilhar. Partilhar a vida, porque nela está a minha singularidade, e porque a minha singularidade só existe pelo conhecimento do outro.
No meu caso, a partilha passa sempre pelas palavras: lidas, proferidas (tantas), ouvidas, cantadas (mal), inventadas, escritas. Andam por aí, em sons e ecrãs, em papéis e caderninhos, em blogs e redes sociais; espalhadas desarrumadamente por todo o lado - com nexo, sem nexo, com vida.
Agora, estarão todas aqui! Mentira! Apenas as escritas e mesmo assim apenas algumas. Atrevo-me a desejar que verterei para aqui só as mais bonitas (novas ou antigas, recentes ou repetidas). Porque a beleza é essencial, e a arrumação é sempre bela - para mim.