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domingo, 27 de dezembro de 2015

Carta a David - O Guardião do Silêncio

Junto ao mar, 27 dezembro 2015
David, 
gostava de te ter encontrado, de poder conhecer o teu recanto de tesouros muito quietos e de te convidar a vires conhecer o meu. Há pessoas que encontram no carinho de um animal de estimação o prazer de chegar a casa e não entendem como eu, exatamente da mesma forma, o encontro nas minhas prateleiras: como se um grupo silencioso de amigos estivesse sempre aqui incondicionalmente à minha espera, como tu dizes, à espera do afago das minhas mãos. É essa vontade que tenho sempre que entro no meu forte: acariciar cada uma daquelas personagens que conheci e ansiosa por encontrar as outras a quem ainda não tive tempo de me apresentar.
Os meus livros são os meus companheiros - a única certeza de que nunca estarei só -, mas, ao contrário de ti, não desprezo os livros novos, não os acho apenas papéis pintados com tinta, frios e sem mistérios, acho-os precisamente mistérios provocadores à espera de serem arrefecidos. Sinto, perdoa-me a hipérbole, um prazer sexual ao abrir um livro pela primeira vez; indescritível a sensação de percorrer todos os seus cantos virgens com os meus dedos, de lhes soltar os silêncios das palavras, de lhes provocar as primeiras cicatrizes (o canto da página 84, por exemplo, onde esbarrei em mim dentro de ti). Gosto e tenho de os consumir a cada leitura - não espreito para os livros, possuo-os, marco-os, abro-os, leio-os. Como pode um livro chegar à última página sem a marca de quem os leu? É como passar pela vida sem que alguém se lembre de nós, tentando ser discretos para não incomodarmos - isso não é viver, aquilo não é ler.
Por isto mesmo, David, entendo tão bem o valor acrescentado de um livro usado. Além de poder comprar mais por muito menos, também eu me emociono na expectativa do que vou encontrar para além da certeza das palavras. Acumulo na caixa das surpresas uma palheta talvez dum músico esquecido, um convite para uma festa memorável da qual não tenho fotografias, anotações sobre filmes que eu já vi, e nunca esqueço o cheiro que trazem da casa de onde foram expulsos, a dedicatória que ainda não consegui decifrar ou as anotações e dúvidas expressas discretamente a lápis. E imagino o que pensará um dia quem encontrar o meu rasto. 
Também não consigo compreender quem se desfaz deles, como se estivessem a mais, como se não pertencessem ao lar. Não entendo, porque não esqueço: o meu Ensaio sobre a Cegueira que nunca mais voltou para casa, o meu The French Lieutenant's Woman a quem perdi o rasto, o meu Regresso que demora em regressar, o meu Os Meus Problemas deixado imperdoavelmente num autocarro da Rodonorte, ou o meu Os Anagramas de Varsóvia que só saiu há uns dias e de quem já tenho saudades.
Os livros usados trazem sempre mais histórias, ainda mais silenciosas do que as outras e por isso mesmo te resolvi escrever. São eles que verdadeiramente guardam o silêncio das palavras sem fim, das que estão escritas e que nunca podem ser completamente lidas e das que transportam como que apêndices escondidos em esperas intermináveis. Todos esperamos sempre algo que nunca virá e só quando sabemos compreender essa espera no silêncio das palavras que viajam sabemos realmente viver.

Contigo na espera,
Fi

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