Se há lugar que guardo no baú mais precioso das memórias é a marquise do apartamento onde nasci e cresci. Ao olhar para trás, parece que era lá que tudo acontecia – as refeições, as conversas da família, os trabalhos de casa, as festas de aniversário, as brincadeiras pelo chão, e mesmo o olhar curioso de uma menina que fitava o mar sem saber o que estaria do outro lado da linha do horizonte.
Lembro-me bem de estar de joelhos em cima de um banco, com os braços pousados no parapeito frio, com os caracóis loiros a esvoaçar, a olhar o infinito e a imaginar que do outro lado do mar deveria haver um mundo espelho, onde uma menina exatamente igual a mim teria os mesmos pensamentos e sentimentos que eu. Talvez tenham sido esses os meus primeiros raciocínios mais elaborados.
Mais tarde, já adolescente, olhava os relâmpagos que caíam no mar e chorava as dores da trovoada que sentia dentro de mim. Escondia o rosto nos caracóis agora menos loiros e lambia as gotas de chuva que se misturavam com as minha próprias lágrimas. Foi na mesa da marquise que escrevi os meus primeiros textos – linhas que se confundiam com versos, palavras que se transformavam em melodias. Foi na marquise que aconteceu o único segredo da minha vida.
Aos dezoito anos, deixei a casa dos meus pais para viver bem longe, mas pensava muitas vezes nas paredes de azulejo azul e do segredo que lá deixara.
Um dia, quando ouvi pela primeira vez passar na rádio uma música que eu compusera tantos anos antes na mesa da marquise, decidi – escrevi num papel branco e liso o segredo que guardava na memória num relato que me fez não raras vezes apertar os olhos de dor e vergonha. Voltei lá, desencaixei parte de um caixilho de alumínio e escondi aí a minha confissão. Talvez um dia alguém a encontre, duvide da narrativa e ligue para o número que deixei no fim, e o meu percurso, até então sereno e impune, chegue ao fim.
Adorei ler :)
ResponderEliminarVou continuar a ler-te.
ResponderEliminarBelas memórias, grandes tempos: a juventude.
ResponderEliminarGostei muito, Fi. Continua a escrever.
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