ConText

ConText

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Defecar

As novas tecnologias estão cada vez mais preocupadas com o nosso planeta, ou pelo menos é bonito acreditarmos nisto. Depois de tanto andarmos para aqui a destruir, fazemos uma espécie de catarse de cada vez que ligamos uma luz LED ou usamos um carro movido a eletricidade (isto é mais um desejo do que uma realidade - experimentei e gostei). Sentimo-nos inteligentes por sermos capazes de evoluir respeitando o ambiente: fazemos reciclagem e sorrimos, comemos brócolos biológicos e inchamos de vaidade, não bebemos leite de vaca e consideramo-nos superiores, e por aí além. Garantimos - especialmente a nós mesmos - que somos seres evoluídos e que já nem nos passa pela cabeça deixar a torneira aberta quando escovamos os dentes - e eu acho isto tudo muito bem. Tarde, mal, pouco, quase nada, mas ainda assim melhor do que involução total.
Contudo, apresso-me a confessar: há tecnologias amigas do ambiente que são extremamente desagradáveis. Isto de defecar em casas de banho públicas (especialmente em bares e restaurantes) às escuras não pode, certamente, ser considerado evidência de evolução humana. Já é incómodo fazê-lo à caçador - doem as pernas, os músculos tremem, é cruciante -; e nem pensar em não ser assim (ouço logo a advertência aterradora da minha mãe na memória NÃO TE SENTES!), e ainda por cima fico às escuras depois de uns segundos a tentar equilibrar o rabo no ar?!
Não gosto! Perdoe-me o planeta, mas isto assim também já é de mais! Ou então (reparem bem no rasgo de inteligência que evidencio), podiam colocar o sensor alinhado com as nádegas! Assim, bastaria abanar ao de leve o traseiro e não seria preciso levantar o rabo (movimento muito perigoso), agitando os braços, para ligar de novo a luz! Boa, senhores engenheiros?


P.S. Vá-se lá saber por que escolhi este tema em dia de publicação de listas de colocação de professores.

domingo, 23 de agosto de 2015

The Green Mile

Este é o título do meu filme preferido de todos os tempos. Ao contrário do que normalmente acontece, só agora, muitos anos depois de ter visto o filme, li o livro. Já sabemos como é muito mais enriquecedora a experiência da leitura em relação ao filme, mas não é isso que me importa agora. Até porque, apesar de faltarem algumas partes na produção para cinema, o importante está lá. E o importante é, de facto, muito importante.
Talvez seja um amor inexplicável, ou veneração avassaladora, mas há qualquer coisa nesta história que me faz prostrar em admiração: como pode alguém imaginar uma história destas? Como pode Stephen King entrar diretamente na minha alma, nas entranhas de todos os seres humanos, como é possível conhecer assim a essência do que somos - acima de qualquer raça, religião, cultura, nacionalidade?
Lembro-me de ter chorado das, pelo menos duas, vezes que vi o filme, mas as lágrimas foram ainda mais contundentes na página 411 do livro. Não são lágrimas de emoção ou de tristeza, são lágrimas de incredulidade e aceitação, como se aquele narrador tivesse conseguido chegar lá dentro, tocar no botão escondido e desprender tudo aquilo que aprendemos a esconder para conseguirmos viver.
Perco-me nas voltas desta tentativa de explicar o que considero grandioso, apenas porque as palavras nunca são suficientes para explicar o que verdadeiramente sentimos. E aqui não consigo mostrar a pele, a íris, a corrente sanguínea ou o sentir de dentro - e foram estas partes de mim que entenderam, de facto, esta história. 
O bem e o mal, como sempre, mas sublime aqui. O amor que mata e o amor que dá vida. A inevitabilidade da efemeridade. Obrigada, SK.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

A viagem (i)

A noite anterior à partida foi longa. De certo modo, achei que tinha despedidas a fazer: sentei-me no sofá da sala, olhei para a minha vida nos últimos meses e assegurei-me de que tomava a decisão correta. Adormeci.
         Acordei um pouco antes das 5 e tomei um duche. Sem saber muito bem quando poderia repetir o prazer de um banho, demorei-me a sentir a água quente tocar-me a pele. De olhos fechados, vi tudo o que tinha conquistado até chegar a este momento. Vesti uma roupa leve, um casaco quente e carreguei uma mala praticamente vazia. O táxi estava à porta à hora marcada:
-    Bom dia, menina!
-    Bom dia. - respondi sem corresponder ao entusiasmo matutino.
-    Então vamos lá até ao aeroporto.
-    Sim, obrigada.
         O taxista estava bem disposto e com vontade de conversar, mas as minhas respostas curtas desencorajaram-lhe as tentativas. Peguei na pequena mala (que não passou sem um comentário do homem), paguei o percurso e parei defronte da placa PARTIDAS. Ainda era de noite e estava muito frio: avancei para o interior, procurando a porta de embarque. Até o aeroporto estava ainda meio adormecido - as lojas fechadas, as senhoras da limpeza a percorrerem os corredores e passageiros lentos. Só os placardes eletrónicos funcionavam totalmente, sem avisos de atrasos ou cancelamentos.
         Na sala de embarque, surpreendeu-me chamarem por mim antes de abrirem as portas - comunicavam-me que me passariam para primeira classe, caso não me opusesse – claro está –, pois uma família havia solicitado o meu lugar para seguir junta. Ora bem, não começo nada mal. Venham lá as vinte e tal horas de voo.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A varanda (ii)

Ana não conseguia mexer-se; a frescura que procurara na varanda depressa se havia transformado num calor insuportável que lhe incandescia a face. O pequeno grupo de talvez uma dúzia de pessoas balançava entre uma vontade incontrolável de rir e um sentimento de culpa pela mesma. Pedro correu a avisar o sr. Alberto, dono da pensão.
As mãos de Ana continuavam a tentar tapar os seios, não muito volumosos - ao menos isso -, mas ainda assim sentia-se terrivelmente exposta. Virou o corpo ligeiramente de lado, não conseguia enfrentar a plateia, mas revelar a nádega esquerda também não lhe parecia grande evolução da situação.
- Menina, o meu Pedro já foi pedir ajuda, não se preocupe. - soltou a Dona Maria.
- Obrigada, - balbuciou - obrigada.
Lá dentro, o sr. Alberto correu a buscar a mala das ferramentas e dirigiu-se ao 303. Bateu à porta, embora não esperasse uma resposta e, afinal, o cenário temido de surpreender alguém na sua intimidade no quarto estava garantido, só que na varanda. 
Pedro acompanhava o proprietário, apanhou a roupa deixada no chão e, empoleirando-se num banco, fê-la chegar a Ana que a vestiu como se a temperatura tivesse, repentinamente, caído uns 10º.
A persiana estava derreada, deixando um espaço no topo, por onde Ana tentava agora espreitar, tentando ignorar a audiência que, aos poucos, ia perdendo o interesse.
A tarefa foi complicada: pesava realmente muito e estava velha; contudo, o sr. Alberto - homem persistente e experiente (não esquecendo a ajuda do jovem Pedro) - conseguiu retirar as ripas e abrir caminho do quarto para a varanda, ou melhor, da varanda para o quarto. Ana entrou, ainda a tentar esconder partes do corpo que já estavam tapadas, e reclamou com veemência hesitante com o proprietário da pensão, enquanto lhe agradecia também ter solucionado o problema.
Depois encarou Pedro, reconheceu as mãos que lhe haviam chegado a roupa e disse-lhe:
- Obrigada pela ajuda.
Pedro estava parado a olhar para ela, já a tinha visto lá de baixo, após o estrondo, mas eram os olhos dela que o paralisavam. Segurava uma ferramenta qualquer nas mãos, mas não se mexia, estava assustadoramente imóvel.
- Ó Pedro, congelaste, rapaz? - admirou-se o sr. Alberto que até há bem pouco tinha contado com a destreza do moço.
Havia um cheiro no ar, ou a cor dos olhos que lhe parecia diferente das outras, um som quase impercetível... nem Pedro, caso fosse chamado aqui a depor, conseguiria explicar a situação. E por isso se entende que apenas tenha conseguido dizer:
- Já reparou? A minha T-shirt é da mesma cor das suas cuecas!

sábado, 8 de agosto de 2015

Monte Gunung Agung

Não dormi naquela noite. Às seis da manhã, na porta de embarque, a funcionária da TAP perguntou-me se me importava de passar para primeira classe, porque uma família, para seguir junta, precisava do meu lugar. Não me importei, achei que era um bom presságio, mesmo assim, ao longe. Embarquei. Acho que voei mais rápido do que o avião que me levou a Milão. Cheguei lá muito antes de desembarcar. Percorri corredores de um aeroporto antigo e cheio de pessoas tão diferentes. Senti-me grande por ser apenas mais uma ali e nem me importei quando, ao pedir informações, me responderam apenas “Bella ragazza!” Sorri e segui sem saber para onde, mas encontrei um lugar num outro avião que parou num mundo branco, limpo e de extrema organização no Qatar, onde me senti levada ao colo para um outro lugar. Longe da terra, voei até Singapura onde as borboletas me acompanharam numa espécie de banho matinal que me lavou de tudo o que ficara para trás e voltei a descolar.
Aterrei. Percorri corredores de anúncios a casas de sonho e ilhas paradisíacas. Paguei para entrar em Bali e vi-te. O mundo parou e o que estava tão longe passou a tão perto que nem a brisa quente e húmida cabia entre nós. Lembro-me de ver as palmeiras altas que decoravam a receção do hotel sob um céu de estrelas que percorremos uma a uma, juntos. Lembras-te? A pedra da banheira refrescou-nos os corpos incandescentes de amor e tesão e ali, perto de ti, senti-me perto do centro do mundo. Precisei de sair dali e saber-me acordada. Levaste-me pela mão nas ruas com cheiro a incenso e sentaste-me numa mota barulhenta onde me pude abraçar a ti. No cimo do Monte Gunung Agung disseste “Casa comigo.” Juro que senti o vulcão estremecer.


sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Chinelada

Eu não gosto de chinelos!
Para mim, o chinelo é tão antiquado como usar toalhas absorventes durante a menstruação: não faz sentido! A evolução dos pensos e tampões tornou aquele hábito completamente obsoleto, ridículo, incómodo e simplesmente improfícuo. Mas será que ainda passa pela cabeça de alguém usar essas toalhinhas? Nem à minha avó - se ainda cá estivesse e caso estranhamente ainda fosse menstruada.
Pois acho exatamente o mesmo em relação aos chinelos; pior: ainda há uma corrente por aí que os quer fazer passar por item de moda altamente invejado - no caso de serem de uma determinada marca! Nem posso acreditar em tal bujarrona - então um chinelo, de enfiar no dedo (quem sabe martirizando-o permanentemente), a bater impiedosamente no calcanhar que luta por sobreviver, só porque tem lá uma marca específica na tirinha aboleimada, ainda se torna num item chique?!
Não se trata apenas de uma questão de gosto, caros leitores, longe de mim querer diminuir o gosto dos outros sobrevalorizando o meu. Definitivamente, não é nada disso. Usamos calçado para proteger os pés: que nos suportam, que nos ajudam na inevitável e preciosa locomoção; não usamos calçado para prejudicar as nossas bases. O chinelinho de enfiar no dedo (é a esses que me refiro concretamente) bate inexoravelmente no calcanhar, ferindo-o ao estilo "água mole em pedra dura tanto bate até que fura". Ou seja, aos poucos, os calcanhares ressentem-se, ficam doridos, necessitam de uma proteção extra por causa da constante agressão e formam uma camada mais dura de pele (que pode até vir a rachar em virtude de, sendo mais dura, secar mais rapidamente).
Assim, e exposta a verdade científica - podem, sem medo, confrontar os podologistas - devo ainda acrescentar que podem ser usados mas com muita moderação. Exemplo é uma ida rápida à praia, mas que não contemple uma caminhada considerável para lá chegar.
Fora isso, por favor, abstenham-se de tal (não vou adjetivar) hábito.
Claro que até me podem dizer: Então e o mesmo não se aplicará aos stilettos? E eu respondo: E a elegância é comparável?! Por favor...
Também nunca achei muita piada à extrema coerência - é extremamente aborrecida!

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Tarde

Sentada, junto à porta, Carla não sabia o que fazer. Mexia nas pontas do cabelo, enrolava-as repetidamente (havia já um caracol bem definido do lado direito). Olhava a porta fixamente - ainda retumbava na memória o barulho do seu bater violento há quase uma hora atrás. Engolia em seco, tentando controlar as lágrimas que pareciam poder explodir a qualquer momento e voltava a enrolar as pontas do cabelo.
Não podia fingir que não ouvira aquilo. Não podia esquecer as palavras que tanto a magoaram. 
Se ela não entende que me magoou, que faço eu aqui? Que faço eu aqui à espera que a porta se volte a abrir? Vou embora! Tenho que ir embora! Não há outra solução! Prometi a mim mesma que me ia respeitar, que me colocaria sempre em primeiro lugar... Não vou chorar! Então por que raio continuo aqui sentada?
Encheu  o peito de ar, passou as duas mãos pelo cabelo e levantou-se. Tirou os olhos da porta e dirigiu-se ao quarto com passos lentos mas firmes.
Era talvez uma das decisões mais difíceis que tinha de tomar; detestava tomá-las - habituara-se de mais à passividade que Joana lhe incutira - e era assim que se sentia confortável, sem ter de decidir. Estava, por isso, nervosa: tomara a decisão de se levantar, de tirar os olhos da porta, mas não sabia bem o que fazer a seguir.
Abriu hesitantemente as portas do guarda-vestidos e ficou parada a olhar.
Que ridículo! Nem sei ao certo quais destas roupas são realmente minhas!
Os olhos já não brilhavam, os movimentos foram-se tornando cada vez mais rápidos. Tinha duas malas cheias, um caracol a desfazer-se e um sorriso iminente.
A porta abriu-se de repente e ouviu:
- Perdoa-me.
Mas era tarde de mais.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

A Marquise

Se há lugar que guardo no baú mais precioso das memórias é a marquise do apartamento onde nasci e cresci. Ao olhar para trás, parece que era lá que tudo acontecia – as refeições, as conversas da família, os trabalhos de casa, as festas de aniversário, as brincadeiras pelo chão, e mesmo o olhar curioso de uma menina que fitava o mar sem saber o que estaria do outro lado da linha do horizonte.
Lembro-me bem de estar de joelhos em cima de um banco, com os braços pousados no parapeito frio, com os caracóis loiros a esvoaçar, a olhar o infinito e a imaginar que do outro lado do mar deveria haver um mundo espelho, onde uma menina exatamente igual a mim teria os mesmos pensamentos e sentimentos que eu. Talvez tenham sido esses os meus primeiros raciocínios mais elaborados.
Mais tarde, já adolescente, olhava os relâmpagos que caíam no mar e chorava as dores da trovoada que sentia dentro de mim. Escondia o rosto nos caracóis agora menos loiros e lambia as gotas de chuva que se misturavam com as minha próprias lágrimas. Foi na mesa da marquise que escrevi os meus primeiros textos – linhas que se confundiam com versos, palavras que se transformavam em melodias. Foi na marquise que aconteceu o único segredo da minha vida.
Aos dezoito anos, deixei a casa dos meus pais para viver bem longe, mas pensava muitas vezes nas paredes de azulejo azul e do segredo que lá deixara.
Um dia, quando ouvi pela primeira vez passar na rádio uma música que eu compusera tantos anos antes na mesa da marquise, decidi – escrevi num papel branco e liso o segredo que guardava na memória num relato que me fez não raras vezes apertar os olhos de dor e vergonha. Voltei lá, desencaixei parte de um caixilho de alumínio e escondi aí a minha confissão. Talvez um dia alguém a encontre, duvide da narrativa e ligue para o número que deixei no fim, e o meu percurso, até então sereno e impune, chegue ao fim. 


sábado, 1 de agosto de 2015

As palavras que me pediste

Deslizo a mão pelo lençol ainda quente, talvez até um pouco húmido e sinto o cheiro doce e almiscarado do teu corpo: procuro em vão a pele macia que me entregaste e escondo na alvura do algodão o sal da minha tristeza.
Reduzido a mim, recolho ao canto que abandonaste.
Repito as imagens e sons, o arrepio dos sentidos e permaneço imóvel como a vontade de te amar ainda para sempre. Confesso a beleza da tristeza que me provocas...
Talvez um sorriso, talvez uma lágrima, talvez uma memória, talvez uma palavra.
Partiste na certeza de eu não ter encontrado as palavras que me pediste e eu fiquei na incerteza de um dia as encontrar.