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quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Lara (um rascunho)

O meu nome é Lara. Muitas vezes me dizem que ao olhar para mim veem a minha mãe. Eu própria, por vezes, nos dias em que estou mais bonita, vejo o rosto dela refletido no espelho. Não é nada de único ou inaudito, talvez apenas uma consequência lógica de genes, cromossomas, momentos de partilha e amor. Puro amor. 
Tenho, fisicamente, algumas semelhanças com o meu pai, e algumas das minhas saudáveis manias aprendi-as com ele. Há no meu pai uma extrema capacidade de adaptação que eu julgo ter herdado, embora no caso dele a adaptação venha de uma natural aceitação da realidade, enquanto no meu caso ela venha do fascínio que a vida me provoca.
Contudo, as semelhanças físicas são, de facto, predominantemente com a minha mãe; exceção feita aos olhos verdes que não me tocaram em sorte. No que se refere à personalidade, posso, com alguma propriedade, dizer que herdei inúmeros traços dela, embora algumas características se tenham, provavelmente, aguçado e provocado aquilo que ela algumas vezes caracterizava e sublinhava como 'Que feitio!...' 
Penso, talvez em demasia, nas razões que me levam a ser como sou e se estes meus dramas e loucuras vieram já no pacote inicial, ou se foram adquiridos ao longo da vida como faixas bónus. Desconfio das prescrições astrológicas que me ameaçam uma personalidade demasiadamente afetiva e emotiva, como se as tentativas voluntárias e trabalhosas de desenvolvimento de técnicas de autocontrolo fossem completamente inúteis.
Felizmente, horas a fio de isolamento por condução no meu carro para o trabalho deram-me a oportunidade de milhares de minutos de profunda meditação, nas quais atingi um estado de plenitude altamente invejável. Devo-o claramente à crise que se instalou no sistema educativo português, que, procurando professores com alto nível de estabilidade emocional, promove estes, digamos, SPAs itinerantes. Felizmente, sou uma excelente condutora e tenho tido a oportunidade de conhecer paisagens invejáveis e indescritíveis. E é, principalmente, nesses momentos que encaro com toda a honestidade as minhas particularidades de personalidade. Aceito, por vezes até com um certo orgulho, o meu, esclareçamos, mau feitio, porque o entendo como parte integrante do que sou sem que - isso, sim, incomodar-me-ia - prejudique os que me rodeiam. 
Discorro frequentemente em textos diarísticos e extremamente íntimos, na esperança de um dia serem absolutamente necessários para procurar as razões que desvendem a origem dos meus atos, atitudes ou, na onda do espiritualismo, do meu karma. Não posso, em caso algum, acreditar que são suficientes e, nessa demanda, provavelmente inútil, encontro a necessidade deste texto que agora enceto.
Desvendo, então, um dos objetivos deste texto: explicar aos que me amam as razões do meu 'Que feitio!...'. Como se tornará evidente, este não será, porém, o objetivo principal.
As estórias que compõem um conjunto de vidas entrelaçadas são sempre demasiado complexas para poderem ser transmitidas em todo o seu esplendor através dos relatos orais, ou mesmo de alguns escritos, e muito menos por aquilo que a memória nos deixa trazer para o presente. Lembro-me bem (temos sempre algumas memórias que são claras) de alguém (não me recordo agora quem) me ter dito que nós alteramos as nossas próprias memórias em função do que nos convém a determinada altura da vida, mas que, mais tarde, de tanto repetirmos uma memória não real mas alterada, acreditamos nela ao ponto de a conseguirmos visualizar na tela cinematográfica que trazemos naturalmente incorporada. Isto significa que, quando digo à minha filha que tive sempre boas notas, que estudava imenso, que era extremamente responsável, que nunca terá sido necessário um professor chamar-me a atenção, poderei não estar a contar toda a verdade, embora eu, remexendo os ficheiros mentais da minha vida académica, encontre apenas aquilo que lhe digo. Numa situação ou outra, ao referir estes factos à minha filha na presença do meu pai, posso ter ouvido, como quem não quer a coisa e devidamente afastados da infante, que em tempos também tivera um recadinho na caderneta, ou levara uma palmadinha por algum ato menos responsável.
Não quero, de forma alguma, dizer que apaguei ou alterei todas a minhas memórias que mostram um lado de mim um pouco mais negativo, quis apenas realçar como por vezes nos enganamos a nós próprios para podermos ter as armas absolutamente necessárias num determinado momento da vida.
E esta é uma questão importante. As armas. É impossível ter uma passagem pela vida mais ou menos harmoniosa se não a encararmos como uma luta onde possuir armas adequadas  se revela absolutamente fundamental. A memória é uma delas; uma das mais importantes, pese embora a falsidade que por vezes revelam.
Posto isto, procurarei fundamentar estas minhas recordações em alicerces variados, para não me cingir à minha memória que, como eu própria tenho vindo a descobrir, nem sempre me é leal. 
Tenho 46 anos. Acredito que mais de metade da minha vida está já vivida e penso que consegui, há poucos anos, encontrar a tranquilidade necessária para vivê-la em plenitude, isto é, perceber quais as armas que me fazem atingir vitórias diariamente. Teriam sido bastante úteis para evitar os trabalhos forçados que tive que desenvolver no passado, mas não as possuía na altura, ou eram ainda tão rudimentares que poucos benefícios me traziam. 
O caminho que percorri até aqui chegar foi repleto de acontecimentos, como na vida de qualquer pessoa (suponho), mas estas minhas estórias - penso, por vezes - parecem ter sido delineadas por algum criativo com necessidades de afirmação!

Começo, então, pelo início, não o meu, mas aquele que, de alguma forma, viria a possibilitar a minha existência, a moldar o meu caminho, a influenciar as minhas decisões. Será possível, será mesmo possível que as minhas decisões tenham sido influenciadas por acontecimentos de há décadas atrás? Claro que sim, é o que acontece a toda hora, é o mais comum dos eventos: decisões influenciadas por séculos de história, por gerações de hábitos, por erros inesquecíveis, ou mesmo por sucessos invejados, ou simplesmente desejados.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Revolta fora do Revolto

Quantas vezes já comecei um texto por "Sou professora"? Muitos! E este é mais um.

Sou professora. Já não sou contratada, é verdade; agora pertenço aos quadros do Ministério da Educação. Ao fim de 20 anos de serviço! 20!

Talvez a frase não precise de ponto de exclamação, uma vez que em Portugal aquela afirmação não é uma exclamativa, apenas declarativa, normal, banal, ordinária.

Assim, ao fim de 20 anos, consegui integrar os quadros e começar uma carreira que, por pouco, me escapava por entre os dedos. Finalmente, professora com possibilidade de um trabalho contínuo, sério, estruturado, organizado, bem planeado, a médio e longo prazo. Finalmente numa escola por um período de, pelo menos, 4 anos...

Como diz a minha filha: "Só que não...!"

Pois não. Para conseguir ficar nos quadros tive que arriscar ir para longe da minha casa. Arrisquei. Foi a minha opção. Eu e a minha família achámos que era melhor isto do que a certeza do subsídio de desemprego em setembro, melhor do que a incerteza do tamanho do ordenado quando ficasse colocada. Arrisquei. Foi a minha (nossa) escolha. Porque escolhas destas são sempre da família.

E assim estaria, conformada com a minha decisão, a lecionar em Lisboa, a 300km do meu (P)porto. A 3 horas de distância da minha filha, do meu marido, do meu pai, do meu irmão, do meu sobrinho, da minha família, dos meus amigos que são tanto quanto família. Sim, tive a sorte de até agora nunca estar muito longe deles. Também tinha sido essa a minha escolha: contratada, só perto dos meus.

Infelizmente, esta história não se resume a escolhas. Antes assim fosse. Fiquei colocada em Lisboa, por decisão injusta do Ministério, enquanto colegas menos graduados (dos quadros - como eu) ficaram mais perto de casa. E agora, condenada, aceito. Porque pelos visto não é possível fazer-se justiça. Porque pelos vistos o Estado é obrigado a dar proteção e defesa a um criminoso, mas pode maltratar professores. E ninguém se importa. Ninguém se importa.

Este princípio (de ano, de carreira, de solidão, de medo) ainda não vai a meio, mas tem Fi. E isso significa que tenho trabalho, que adoro os meus alunos, que concretizo um projeto que me está a encantar, que gosto dos colegas que conheci nesta nova escola. Que tenho amigos que resistem a todos os quilómetros, que tenho uma família de ouro. Que sou feliz. Feliz, porque mesmo a 300km, cada minuto significa vida. E amor.

É uma revolta, fora do Revolto.


terça-feira, 1 de agosto de 2017

Carta aberta a Richard Zimler

Caro Richard Zimler,

começo esta carta por lhe relatar fielmente, tanto quanto um sonho é fiável, os acontecimentos passados na noite de ontem. Adormeço sempre muito bem, sem me perder em divagações que me prejudiquem a chegada do sono, embora isso seja compensado com um acordar prematuro - pelo menos para quem está de férias - lá pelas 7h da manhã. Por isso, os eventos que aqui partilho ocorreram perto dessa hora, no mundo fantástico e misterioso dos meus sonhos.

Eu estava a visitar um palácio lindíssimo, enorme, com salas imensas e grandes escadarias interiores e exteriores. Havia uma guia que me acompanhava e me explicava todas as características de cada uma das salas, histórias e estórias, detalhes e curiosidades de cada uma das pedras ali dispostas - ou assim me lembro. Parte integrante desse palácio - infelizmente não me recordo se real ou apenas imaginário - eram umas termas com propriedades milagrosas, onde um conjunto considerável de pessoas se encontrava. A visita continuou até um salão muito espaçoso, com longas mesas pintadas aleatoriamente com grupos de pessoas a fazer refeições.
Foi no meio desses grupos de pessoas que detetei o escritor Richard Zimler e comentei algo como "Olha, está ali o Richard Zimler! Gosto tanto do que ele escreve!" A minha guia, que havia entretanto desaparecido, não ouviu o meu comentário, mas alguém que permanecia de pé junto a mim ouviu-me e disse: "É meu aluno! Veio no meu grupo! É, de facto, extraordinário."
E eu, ainda com aquela curiosidade de quem enfrenta um ídolo, continuei: "Ai, sim? Professora? De quê?".
Talvez a resposta não tenha sido das mais interessantes, pois lembro-me apenas de ela ter referido algo relacionado com um workshop e uma faculdade - talvez a de Letras do Porto - e a confirmação do escritor no grupo liderado pela professora em questão.

Sentei-me, penso que aguardando a minha refeição.
Alguns momentos depois, na indefinição da passagem do tempo a que um sonho obriga, olhei para a minha frente e o escritor estava mesmo ali, dois lugares para a minha direita, mas na minha mesa, mesmo ali à minha frente. Lembro-me de me sentir envergonhada por querer iniciar algum tipo de diálogo (não que isso me seja difícil!!), mas - respirando fundo - saiu: "Perdoe-me por estar a incomodá-lo mas queria apenas dizer-lhe that I am an absolute fan of your work."
Não sei se a partir daqui a conversa se terá processado ou não em inglês, mas sei que aquela frase me ficou gravada naquela língua.
Com simpatia, como imagino que seja na realidade, respondeu-me agradecendo e a conversa continuou. Não recordo os detalhes do diálogo que se encetou - até porque devo confessar que a minha admiração se deve fundamentalmente a três elementos: um livro que li e que me encantou, outro livro que me fez admirar a sua capacidade de trabalho e os seus posts de Facebook que vou, amiúde, acompanhando - mas no sonho a conversa foi longa.
Talvez tenhamos falado sobre homossexualidade, preconceito, políticas atuais, adoção, barrigas de aluguer, ou de tantos outros temas que sei seriam empolgantes numa conversa com Richard Zimler.

Talvez o palácio que visitei fosse Portugal, e os visitantes os turistas que percorrem o nosso país. Talvez as pessoas a almoçar fossem a população nas suas rotinas diárias, e o escritor apenas um elemento de destaque como há tantos na sociedade.

Talvez não seja nada disso e eu tivesse apenas relembrado um post recente do Facebook ou algumas linhas do Evangelho segundo Lázaro que terminei há poucos dias.

Sei que isto me deu ainda mais vontade  para continuar a descoberta do trabalho de Richard Zimler e uma última conclusão (a razão desta carta aberta): se sonharem comigo, contem-me! Eu sonhei com Richard Zimler e resolvi partilhar.

Com muita admiração,

Filomena Morais

sábado, 22 de julho de 2017

Aprendizagens para partilhar (1)

Limpeza pirolítica

Sabem o que é? Eu acho muito útil saber e, portanto, partilhar.
A autolimpeza pirolítica consiste num processo de aquecimento de fornos elétricos a temperaturas de 500ºC, que carboniza qualquer resíduo que possa existir no forno. Depois, basta limpar os resíduos com uma esponja ou pano de microfibres. Durante a limpeza, a porta do forno é trancada automaticamente para garantir que não é aberta durante o aquecimento a alta temperatura. Além disso, os fornos elétricos com limpeza pirolítica têm sistema de porta fria, isto é, a porta do forno nunca atinge valores acima dos 50ºC.
Interessante, não é?

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Olhar verde

Há alunos que são passageiros de um barco que balança e avança, sem medo do vento que sopra, sem medo da chuva que cai, sem medo do sol abrasador que cansa os músculos e entorpece os sentidos. 
Há alunos - adolescentes - que são homens e mulheres com valor, com futuro, com sonhos e projetos.
Dêem-me mais destes meninos e meninas que querem crescer e que me ouvem com sede. São poucos, mas são, talvez, os suficientes para salvar o mundo.
Olhar o mundo com olhos verdes.

sexta-feira, 17 de março de 2017

A vida como um mar



Estava sentada num pequeno degrau que descia para a praia. O dia estava sereno: não muito quente, mas a ausência de vento oferecia uma leve sensação de conforto que só era quebrada pelo intermitente som das ondas a chegarem à praia. As mini-explosões de água a bater na areia incomodavam-lhe os sentidos, pareciam estrangeiras àquela serenidade, elementos que corrompiam a paz que emanava do local. A vontade dela era encontrar tranquilidade e por isso descera até à praia, esperando senti-la ali, onde tantos afirmavam que se encontrava. Olhava fixamente o mar, lá longe onde era calmo, tentando ignorar o enrolar ruidoso mais perto de si. 
A decisão tinha de ser tomada e o tempo passava ao ritmo enervante das ondas do mar, sem parar, sem permitir uma pausa para que o silêncio trouxesse as respostas. Sabia bem que estavam dentro de si, embora se rendesse, por vezes, à atraente tentação de as encontrar nos outros. É mais fácil, talvez, escutar atentamente os conselhos alheios e decidir assim, livre de culpa, como indicação exterior contra a qual não se pode lutar. Porém, a educação que recebera impedia que se deixasse levar pelo que lhe era exterior, pelo que até pudesse ser mais fácil, pela decisão que não trouxesse sofrimento a ninguém, a não ser a ela.
Ele era o candidato ideal, não havia muito a apontar que pudesse servir como desculpa: educado, trabalhador, esforçado e dedicado. Além disso, seria covarde inventar nele as razões que lá não estavam. Desde o pedido que o tempo passara a ser pesado, que a ausência se transformara num refúgio, mas também que a realidade se impusera sem subterfúgios. Nada se alterara, na verdade, o mundo era o mesmo, as pessoas exatamente as mesmas, os sentimentos também. 
Queria fazer jus à educação que recebera e ser capaz de enfrentar as lutas mais complicadas, mas esbarrava na impossibilidade de evitar o sofrimento, multiplicado pelos minutos que antecediam a resposta. 
Desde o fim da adolescência que não havia grandes dúvidas dentro de si, a luta interior tinha terminado mais ou menos com a chegada da vida adulta. Mas depois, a simpatia, o charme, o carisma dele e principalmente a dedicação fizeram-na pensar que talvez fosse possível também aquela solução. Que talvez o amor, mesmo que mais intenso de um só dos lados, pudesse superar tudo. Era tão mais serena a hipótese de conseguir fazer parte de um mundo que já estava apresentado, com o qual não teria de lutar, sem tumultos para enfrentar... E tentou. Passaram anos numa aparente tranquilidade que tentava a todo o custo apreciar, mas as ondas continuavam a bater ruidosamente na areia.
O mar estava calmo, não havia vento e estava sol. Mas a inadiável chegada das ondas à praia fazia barulho. E incomodava-a.
A decisão estava dentro dela: ou no mar.
Não havia - ainda - nenhuma ela. Mas o ele não podia ser mais do que amigo. Talvez até a proximidade que conseguiram construir, apesar de tudo, tivesse já desvelado a realidade e, incapaz de a questionar diretamente, inventara o pedido: a hora de forçar a verdade.
Pouco importa, pensará ela, se ele já sabia ou não. Os factos serão sempre os mesmos, bem como o ruído do bater das ondas.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Os maricas

Quando nascem, o amor que inspiram é incomensurável, são fofinhos, lindinhos, enternecedores, uns doces. E é verdade: os bebés cheiram bem, têm bochechas rosadas que dão vontade de apertar, os olhos, nariz, orelhas e sobrancelhas parecem desenhados com detalhes só possíveis nas mão de grandes artistas. São adoráveis.
Depois, vão crescendo lentamente, ao ritmo de milímetros e gramas por dia, e continuam seres inacreditavelmente amorosos: correm, dão gargalhadas, tropeçam, brincam, dão beijinhos e até aprendem a atirá-los com as mãos. 
Mais à frente, os sons das palavras vão saindo divertidamente trocados, as roupinhas preenchem corpos que parecem amostras de gente grande, vão concretizando habilidades e espantando todos com competências inesperadas.
São assim todos os bebés: meninos e meninas, mais magrinhos ou mais gordinhos, pretinhos ou branquinhos.Tão adoravelmente frágeis que queremos proteger.
E, na maior parte das vezes, conseguimos; protegemo-los do frio, do vento, da chuva, da terra, do pó, da areia, do lixo, do sol, do calor, até dos ácaros e de outros micro-organismos. Há gorros que tapam as orelhas, lenços que cobrem o pescoço, luvas que escondem as mãozinhas, galochas que isolam os pés, cremes que fornecem escudos à pele e óculos que impedem a passagem de raios nocivos.
Mas ainda mais importante do que tudo isso, há mãos que lhes lavam as mãos (e os pés, e o pescoço, e as orelhas, e o rabinho) - fica tudo mesmo muito limpinho. Há mãos que lhes seguram as mãos enquanto atravessam estradas e percorrem caminhos. Há mãos que lhes cortam o pão do lanche e lhes barram a manteiga. Há mãos que lhes apertam os cordões para não tropeçarem. Há mãos que lhes penteiam o cabelo para não ficar desalinhado. Há mãos que lhes lavam a louça para não se magoarem. Há mãos que lhes preparam a caneca de leite para não perderem tempo. 
Há ainda mãos que lhes cortam o bife porque é muito difícil, há mãos que lhes preparam a mochila porque dá muito trabalho. Há mãos que os levam até ao portão de dentro da escola porque o caminho é perigoso, às vezes até há braços que os levam ao colo porque o caminho é longo.
Há tudo o que possa ajudar os meninos e meninas, porque o mundo é um perigo, o mundo é um abismo, o mundo - agora - é muito diferente. O mundo agora está cheio de crianças e jovens que permanecem bebés.
E, de repente, há cérebros que não precisam de ser ligados. Permanecem em stand by, porque há mãos que lhes fazem tudo. 
Esses são os maricas: não os outros.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Ficção por encomenda

O Eurico

A história que vos vou contar não é assim muito interessante, porque é sobre a minha vida, e a minha vida não se pode dizer que seja a coisa mais emocionante do mundo. Ainda assim, há vidas piores e o que vos vou contar mostra que eu aprendi algumas coisinhas ao longo dos anos. 

Quando eu tinha 13 anos e andava na escola, achava aquilo tudo uma grande seca: eram muitas aulas e muitos professores e todos diziam que tudo era muito importante, e eu não conseguia ver muito bem como é que aquilo ia servir para alguma coisa no futuro.

Na minha turma havia muita gente como eu, quer dizer, havia de tudo: pessoal que não gostava muito da escola, pessoal que adorava a escola, pessoal que detestava a escola e pessoal que nem ia à escola… Esses, coitados, eram os piores. Eles até queriam ir, afinal, havia sempre coisas divertidas para fazer, pelo menos nos intervalos. Mas não podiam. Um, lembro-me bem, tinha a mãe muito doente e um irmão mais pequeno: a maior parte das vezes tinha de ficar a tomar conta dele e da mãe. Nós gozávamos com ele quando ele aparecia, porque não sabíamos o motivo de ele faltar tanto - só soubemos mais tarde. Outro também raramente lá aparecia, porque os pais achavam que a escola não servia para nada, preferiam que ele trabalhasse: esse foi chato… porque depois a polícia foi a casa dele, os pais foram castigados e ele ainda esteve a viver numa instituição durante uns tempos. Nunca mais soube nada dele. Também havia duas raparigas muito faladoras: a Dina e a Sílvia, de quem os rapazes gostavam porque eram mesmo muito giras e achavam-se melhores do que os outros. Eu não percebia por quê, afinal tinham negativas e reprovaram no fim do ano, não deviam ser muito espertas.

Depois, havia o Eurico: o rapaz mais divertido da turma. Sempre que abria a boca, fazia toda a gente rir. Nós nem sabíamos onde é que ele ia arranjar tanta parvoíce para dizer. No primeiro dia de aulas, quando o conhecemos, vimos logo que aquilo ia ser uma animação, porque quando um professor lhe perguntou como se chamava, ele respondeu: “Sou o Eurico, o que não tem papas no bico!” Foi a risota geral!

Mas a verdade é que ao fim de algum tempo, ele perdia um bocado a piada… Nós é que não lhe queríamos dizer, mas tanta palermice, ao fim de algum tempo, também cansa. E depois apareceu o prof de História, que era mesmo muito fixe, e a malta gostava toda dele. Menos o Eurico, claro, que achava que aquelas aulas eram só para abandalhar.  O prof Daniel bem conversava com ele, mas nada. E era pena, porque as aulas dele eram mesmo altamente e nessas nós preferíamos ouvir o professor e não o Eurico.

Eu era sossegada: não tinha assim muito boas notas, mas esforçava-me para aprender algumas coisas. Os que normalmente tinham boas notas, andavam a descer, porque o Eurico não deixava ninguém concentrar-se, e os que normalmente alinhavam na risota já estavam a ficar fartos dele, porque na verdade aquilo era sempre a mesma coisa.

Por isso, um dia resolvemos fazer uma reunião de turma e explicar ao Eurico que tinha de parar com aquilo, que já estava a exagerar, até porque a nossa turma já tinha sido castigada pelo comportamento várias vezes, e não era nada fixe ver os outros a participarem em atividades na escola, ou a irem fazer visitas de estudo, e nós: sempre a levar com os sermões do diretor, dos professores todos, e ainda por cima não podíamos participar em nada na escola.

A conversa resultou mais ou menos. Quer dizer, ele não nos ligou nenhum, achou que nós éramos todos uns totós, mas a verdade é que acalmou um bocadito. 

E para não vos aborrecer muito deixem-me avançar na história. No outro dia, quando estava a entrar no elevador do meu prédio deparei-me com a nova senhora das limpezas. Nem queria acreditar: era a Dina (uma das giraças, lembram-se?). Palavra puxa palavra e resolvemos fazer, no facebook, um grupo com o pessoal da turma. Agora já somos todos crescidos e alguns estão tão velhos que eu quase nem os conhecia. Mas foi giro reencontrar o pessoal.

A Lisandra, que era a boa aluna, agora é engenheira e trabalha numa marca de carros muito cara! O Leandro, o que quase nunca vinha à escola, estava a trabalhar numa empresa de construção e agora fechou e parece que a coisa está complicada. Eu consegui, com muito esforço e muito trabalho, ir para a universidade e agora sou professora. O Alberto, que parecia meio morcão, tirou o curso de educação física e agora é treinador de uma equipa famosa de hóquei em patins. A Juventina, que tanto se ria com as piadas do Eurico, conseguiu abrir um cabeleireiro e tem o negócio dela. O que quase não aparecia, acho que se chamava Paulo ou Pedro, não sabemos nada dele. A Dina está a trabalhar no meu prédio, como já vos disse, e a Sílvia alguém disse que ela tinha emigrado.  
E o Eurico, bem… O Eurico tem na página do facebook a dizer que andou na universidade da vida, o que na verdade quer dizer que não estudou. Encontrei-o aqui há tempos: estava no café a contar anedotas e a beber uma cerveja. Disse-lhe olá e ele ao princípio nem me conheceu. Depois, lá se lembrou e estivemos a conversar. Afinal, parece que não tem emprego fixo, porque ninguém lhe paga pelas piadas que conta no café… Se pagassem, estava rico! Vai arranjando uns biscates e confessou-me que está a pensar regressar à escola, a ver se faz o 12º ano, porque se não a coisa fica complicada.

Eu tenho alguns alunos como o Eurico, o que não tinha papas no bico, e às vezes conto-lhes esta história. 

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Diário 23 de janeiro 2017

Este novo ano de 2017 muito sol nos tem trazido. Talvez agricultores e outros ajuizados pensem que um inverno assim nos fará pagar caro, mas eu - pobre citadina - aprecio os soalheiros dias curtos deste janeiro fresquinho.
Entre almoços na esplanada, tremoços, cervejas e selfies de fim-de-semana, correm os dias que deste ano já vão em vinte e três. Lá fora anunciam-se tumultos e adivinham-se tempestades, mas por cá - no calor que a lareira ilumina - há paz, talvez até vitórias, desejos e projetos a conquistar.
E sorrisos... a felicidade completa nos pequenos momentos, nas areias que enchem uma vida grande: o meu doce tesouro - atleta estreante de voleibol. No torneio para si inaugural, ganhou a convocatória pela perseverança. O mais certo era não jogar e isso não lhe retirou o entusiasmo. Mas o prémio aumentou, quando foi chamada para diante da rede. Difícil, exigente, as falhas que se previam e depois, em recompensa pela concentração e por não ter esquecido o recado matinal ("Nunca desistas!"), a euforia: dois serviços que foram dois pontos, e o abraço reconhecido das ex-céticas colegas de equipa. 
Para ela, uma confirmação: não ter medo e perpetuar o esforço compensa. Para mim, um coração cheio, a transbordar.