O meu nome é Lara. Muitas vezes me dizem que ao olhar para mim veem a minha mãe. Eu própria, por vezes, nos dias em que estou mais bonita, vejo o rosto dela refletido no espelho. Não é nada de único ou inaudito, talvez apenas uma consequência lógica de genes, cromossomas, momentos de partilha e amor. Puro amor.
Tenho, fisicamente, algumas semelhanças com o meu pai, e algumas das minhas saudáveis manias aprendi-as com ele. Há no meu pai uma extrema capacidade de adaptação que eu julgo ter herdado, embora no caso dele a adaptação venha de uma natural aceitação da realidade, enquanto no meu caso ela venha do fascínio que a vida me provoca.
Contudo, as semelhanças físicas são, de facto, predominantemente com a minha mãe; exceção feita aos olhos verdes que não me tocaram em sorte. No que se refere à personalidade, posso, com alguma propriedade, dizer que herdei inúmeros traços dela, embora algumas características se tenham, provavelmente, aguçado e provocado aquilo que ela algumas vezes caracterizava e sublinhava como 'Que feitio!...'
Penso, talvez em demasia, nas razões que me levam a ser como sou e se estes meus dramas e loucuras vieram já no pacote inicial, ou se foram adquiridos ao longo da vida como faixas bónus. Desconfio das prescrições astrológicas que me ameaçam uma personalidade demasiadamente afetiva e emotiva, como se as tentativas voluntárias e trabalhosas de desenvolvimento de técnicas de autocontrolo fossem completamente inúteis.
Felizmente, horas a fio de isolamento por condução no meu carro para o trabalho deram-me a oportunidade de milhares de minutos de profunda meditação, nas quais atingi um estado de plenitude altamente invejável. Devo-o claramente à crise que se instalou no sistema educativo português, que, procurando professores com alto nível de estabilidade emocional, promove estes, digamos, SPAs itinerantes. Felizmente, sou uma excelente condutora e tenho tido a oportunidade de conhecer paisagens invejáveis e indescritíveis. E é, principalmente, nesses momentos que encaro com toda a honestidade as minhas particularidades de personalidade. Aceito, por vezes até com um certo orgulho, o meu, esclareçamos, mau feitio, porque o entendo como parte integrante do que sou sem que - isso, sim, incomodar-me-ia - prejudique os que me rodeiam.
Discorro frequentemente em textos diarísticos e extremamente íntimos, na esperança de um dia serem absolutamente necessários para procurar as razões que desvendem a origem dos meus atos, atitudes ou, na onda do espiritualismo, do meu karma. Não posso, em caso algum, acreditar que são suficientes e, nessa demanda, provavelmente inútil, encontro a necessidade deste texto que agora enceto.
Desvendo, então, um dos objetivos deste texto: explicar aos que me amam as razões do meu 'Que feitio!...'. Como se tornará evidente, este não será, porém, o objetivo principal.
As estórias que compõem um conjunto de vidas entrelaçadas são sempre demasiado complexas para poderem ser transmitidas em todo o seu esplendor através dos relatos orais, ou mesmo de alguns escritos, e muito menos por aquilo que a memória nos deixa trazer para o presente. Lembro-me bem (temos sempre algumas memórias que são claras) de alguém (não me recordo agora quem) me ter dito que nós alteramos as nossas próprias memórias em função do que nos convém a determinada altura da vida, mas que, mais tarde, de tanto repetirmos uma memória não real mas alterada, acreditamos nela ao ponto de a conseguirmos visualizar na tela cinematográfica que trazemos naturalmente incorporada. Isto significa que, quando digo à minha filha que tive sempre boas notas, que estudava imenso, que era extremamente responsável, que nunca terá sido necessário um professor chamar-me a atenção, poderei não estar a contar toda a verdade, embora eu, remexendo os ficheiros mentais da minha vida académica, encontre apenas aquilo que lhe digo. Numa situação ou outra, ao referir estes factos à minha filha na presença do meu pai, posso ter ouvido, como quem não quer a coisa e devidamente afastados da infante, que em tempos também tivera um recadinho na caderneta, ou levara uma palmadinha por algum ato menos responsável.
Não quero, de forma alguma, dizer que apaguei ou alterei todas a minhas memórias que mostram um lado de mim um pouco mais negativo, quis apenas realçar como por vezes nos enganamos a nós próprios para podermos ter as armas absolutamente necessárias num determinado momento da vida.
E esta é uma questão importante. As armas. É impossível ter uma passagem pela vida mais ou menos harmoniosa se não a encararmos como uma luta onde possuir armas adequadas se revela absolutamente fundamental. A memória é uma delas; uma das mais importantes, pese embora a falsidade que por vezes revelam.
Posto isto, procurarei fundamentar estas minhas recordações em alicerces variados, para não me cingir à minha memória que, como eu própria tenho vindo a descobrir, nem sempre me é leal.
Tenho 46 anos. Acredito que mais de metade da minha vida está já vivida e penso que consegui, há poucos anos, encontrar a tranquilidade necessária para vivê-la em plenitude, isto é, perceber quais as armas que me fazem atingir vitórias diariamente. Teriam sido bastante úteis para evitar os trabalhos forçados que tive que desenvolver no passado, mas não as possuía na altura, ou eram ainda tão rudimentares que poucos benefícios me traziam.
O caminho que percorri até aqui chegar foi repleto de acontecimentos, como na vida de qualquer pessoa (suponho), mas estas minhas estórias - penso, por vezes - parecem ter sido delineadas por algum criativo com necessidades de afirmação!
Começo, então, pelo início, não o meu, mas aquele que, de alguma forma, viria a possibilitar a minha existência, a moldar o meu caminho, a influenciar as minhas decisões. Será possível, será mesmo possível que as minhas decisões tenham sido influenciadas por acontecimentos de há décadas atrás? Claro que sim, é o que acontece a toda hora, é o mais comum dos eventos: decisões influenciadas por séculos de história, por gerações de hábitos, por erros inesquecíveis, ou mesmo por sucessos invejados, ou simplesmente desejados.