O Eurico
A história que vos vou contar não é assim muito interessante, porque é sobre a minha vida, e a minha vida não se pode dizer que seja a coisa mais emocionante do mundo. Ainda assim, há vidas piores e o que vos vou contar mostra que eu aprendi algumas coisinhas ao longo dos anos.
Quando eu tinha 13 anos e andava na escola, achava aquilo tudo uma grande seca: eram muitas aulas e muitos professores e todos diziam que tudo era muito importante, e eu não conseguia ver muito bem como é que aquilo ia servir para alguma coisa no futuro.
Na minha turma havia muita gente como eu, quer dizer, havia de tudo: pessoal que não gostava muito da escola, pessoal que adorava a escola, pessoal que detestava a escola e pessoal que nem ia à escola… Esses, coitados, eram os piores. Eles até queriam ir, afinal, havia sempre coisas divertidas para fazer, pelo menos nos intervalos. Mas não podiam. Um, lembro-me bem, tinha a mãe muito doente e um irmão mais pequeno: a maior parte das vezes tinha de ficar a tomar conta dele e da mãe. Nós gozávamos com ele quando ele aparecia, porque não sabíamos o motivo de ele faltar tanto - só soubemos mais tarde. Outro também raramente lá aparecia, porque os pais achavam que a escola não servia para nada, preferiam que ele trabalhasse: esse foi chato… porque depois a polícia foi a casa dele, os pais foram castigados e ele ainda esteve a viver numa instituição durante uns tempos. Nunca mais soube nada dele. Também havia duas raparigas muito faladoras: a Dina e a Sílvia, de quem os rapazes gostavam porque eram mesmo muito giras e achavam-se melhores do que os outros. Eu não percebia por quê, afinal tinham negativas e reprovaram no fim do ano, não deviam ser muito espertas.
Depois, havia o Eurico: o rapaz mais divertido da turma. Sempre que abria a boca, fazia toda a gente rir. Nós nem sabíamos onde é que ele ia arranjar tanta parvoíce para dizer. No primeiro dia de aulas, quando o conhecemos, vimos logo que aquilo ia ser uma animação, porque quando um professor lhe perguntou como se chamava, ele respondeu: “Sou o Eurico, o que não tem papas no bico!” Foi a risota geral!
Mas a verdade é que ao fim de algum tempo, ele perdia um bocado a piada… Nós é que não lhe queríamos dizer, mas tanta palermice, ao fim de algum tempo, também cansa. E depois apareceu o prof de História, que era mesmo muito fixe, e a malta gostava toda dele. Menos o Eurico, claro, que achava que aquelas aulas eram só para abandalhar. O prof Daniel bem conversava com ele, mas nada. E era pena, porque as aulas dele eram mesmo altamente e nessas nós preferíamos ouvir o professor e não o Eurico.
Eu era sossegada: não tinha assim muito boas notas, mas esforçava-me para aprender algumas coisas. Os que normalmente tinham boas notas, andavam a descer, porque o Eurico não deixava ninguém concentrar-se, e os que normalmente alinhavam na risota já estavam a ficar fartos dele, porque na verdade aquilo era sempre a mesma coisa.
Por isso, um dia resolvemos fazer uma reunião de turma e explicar ao Eurico que tinha de parar com aquilo, que já estava a exagerar, até porque a nossa turma já tinha sido castigada pelo comportamento várias vezes, e não era nada fixe ver os outros a participarem em atividades na escola, ou a irem fazer visitas de estudo, e nós: sempre a levar com os sermões do diretor, dos professores todos, e ainda por cima não podíamos participar em nada na escola.
A conversa resultou mais ou menos. Quer dizer, ele não nos ligou nenhum, achou que nós éramos todos uns totós, mas a verdade é que acalmou um bocadito.
E para não vos aborrecer muito deixem-me avançar na história. No outro dia, quando estava a entrar no elevador do meu prédio deparei-me com a nova senhora das limpezas. Nem queria acreditar: era a Dina (uma das giraças, lembram-se?). Palavra puxa palavra e resolvemos fazer, no facebook, um grupo com o pessoal da turma. Agora já somos todos crescidos e alguns estão tão velhos que eu quase nem os conhecia. Mas foi giro reencontrar o pessoal.
A Lisandra, que era a boa aluna, agora é engenheira e trabalha numa marca de carros muito cara! O Leandro, o que quase nunca vinha à escola, estava a trabalhar numa empresa de construção e agora fechou e parece que a coisa está complicada. Eu consegui, com muito esforço e muito trabalho, ir para a universidade e agora sou professora. O Alberto, que parecia meio morcão, tirou o curso de educação física e agora é treinador de uma equipa famosa de hóquei em patins. A Juventina, que tanto se ria com as piadas do Eurico, conseguiu abrir um cabeleireiro e tem o negócio dela. O que quase não aparecia, acho que se chamava Paulo ou Pedro, não sabemos nada dele. A Dina está a trabalhar no meu prédio, como já vos disse, e a Sílvia alguém disse que ela tinha emigrado.
E o Eurico, bem… O Eurico tem na página do facebook a dizer que andou na universidade da vida, o que na verdade quer dizer que não estudou. Encontrei-o aqui há tempos: estava no café a contar anedotas e a beber uma cerveja. Disse-lhe olá e ele ao princípio nem me conheceu. Depois, lá se lembrou e estivemos a conversar. Afinal, parece que não tem emprego fixo, porque ninguém lhe paga pelas piadas que conta no café… Se pagassem, estava rico! Vai arranjando uns biscates e confessou-me que está a pensar regressar à escola, a ver se faz o 12º ano, porque se não a coisa fica complicada.
Eu tenho alguns alunos como o Eurico, o que não tinha papas no bico, e às vezes conto-lhes esta história.
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