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segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Como aprendi a ser equilibrada

A história que vos vou contar passou-se, provavelmente, quando eu tinha 7 anos. Há momentos que não são fáceis de assinalar com precisão no tempo, por fazerem parte da amálgama de memórias que ficam algures entre os 4 e os 9 anos. Depois dessa idade, começa a ser mais fácil organizar os separadores das memórias, mas até então, as recordações são como um conjunto de folhas soltas e desorganizadas em cima de uma secretária. Do topo dessa secretária, hoje retiro uma das folhas.
Em todas as minhas memórias de infância há um denominador comum que não posso nunca obliterar: o meu irmão - chegado a casa quando eu tinha apenas 13 meses, não me lembro sequer de um dia da minha vida sem ele. O meu pai e a minha mãe educaram-nos de forma igual, embora os resultados, pelo menos os aparentes, sejam bem diferentes. 
Eu era a tagarela dentro e fora de casa, uma simpatia. Ele era o tímido, o sossegado, mas apenas fora de casa. Por isso, na prática, em casa éramos os dois uns fala-baratos que não deixávamos espaço para o silêncio reinar. 
Fora de casa, a educação que recebíamos obrigava-nos a uma maior contenção. Embora eu fosse mais extrovertida do que ele, ambos primávamos pelo bom comportamento em qualquer situação, mais ou menos formal. Esse comportamento modelar foi resultado de castigos bem aplicados, palmadas no sítio e momentos certos, e de muitos olhares. Os olhares da minha mãe - como de muitas, eu sei - era o suficiente, na maior parte das vezes. 
Um dia, porém, por causa de alguma situação em que a nossa contenção se terá confundido com tacanhez e falta de capacidade de desenrasque, a minha mãe dissertou acerca da necessidade de sermos mais despachados. 
- Que atadinhos! Têm que se safar! - ainda me lembro de a ouvir dizer.
Aquilo reverberou em mim durante uns tempos. Eu não queria nada ser uma atadinha!
Pouco tempo depois, numa consulta médica em que estávamos todos presentes, enquanto os meus pais conversavam com o senhor doutor, eu achei por bem pôr em prática a minha nova faceta de ser uma menina despachada. Não sei muito bem as interpretações intelectuais que terei feito na altura desta dicotomia atada / despachada, mas lembro-me de deliberadamente começar a mexer em tudo quanto era material na secretária do médico. Levantei alguns papéis, mexi num objeto ou noutro, inspecionei algum material que por ali estava espalhado: enfim, estava a ser exatamente o contrário do que seria uma atadinha!
Penso que o médico terá olhado para mim, mas isso pouco me importou. O pior foi quando cruzei o olhar com o da minha mãe. 
Ali, numa pequena fração de segundo, percebi com a maior facilidade o significado de "nem 8 nem 80". 
E foi assim que aprendi a ser equilibrada. Sim?

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Memória e memórias

Há momentos que não ficam na memória, ficam só no coração. Mas há momentos que deviam ficar registados para sempre, porque tu és única e nunca te poderei comparar a nada a não ser a ti própria. Desde o dia em que nasceste que sinto esta necessidade de perpetuar tudo o que tu és, porque tenho medo que um dia nem tu possas saber aquilo que um dia foste. Sei que é assim: impossível guardarmos na memória aquilo que fica só no coração. Impossível passar a nossa memória para um disco externo que grave tudo aquilo que vemos, e ainda mais o que sentimos. Por isso escrevo, e sempre escrevi para te dar a conhecer todos os momentos que estão aqui no coração. É um trabalho sem fim, és uma fonte inesgotável de matéria prima, e todas as palavras que existem no mundo são claramente insuficientes para te descrever, para te identificar, para te amar. Mas eu tento. Continuo e insisto, porque me ajudas, porque cada sorriso teu que eu colho me impele a escrever.
A começar que seja pelo mais simples: e fácil é dizer-te que a chegada da tua primeira década se caracterizou por uma série de acontecimentos que se tornarão possivelmente marcos da história. Ou não. Mas foram, ainda assim, marcantes em cada um de nós que os vive ainda com intensidade. E é daqui, dos teus 10 anos, que te mostro aquilo que nunca deixarás de ser, mesmo que um dia não te consigas lembrar.
O início de 2016 foi dominado pelas eleições presidenciais em Portugal e estas não foram iguais a todas as outras. Nestas tu sabias de cor os nomes de todos os candidatos presidenciais e, embora eu não tenha feito questão de mostrar grandes favoritismos, tu assumiste clara e independentemente o apoio ao candidato Marcelo Rebelo de Sousa. O mais mediático, é certo, mas também aquele que, por vários motivos que fizeste sempre questão de enumerar, te atraiu particularmente. Gostavas do sorriso e da simpatia, da disponibilidade e da seriedade. E dos outros tinhas também o que dizer, mais do que só o próprio nome. 
Em 2016, o teu candidato tornou-se o presidente do teu país, insistes em querer conhecê-lo, e sei que isso acabará indubitavelmente por acontecer. Quero que não te esqueças disto, que as tuas primeiras opiniões políticas - é o que isto é - aconteceram ao chegares aos 10 anos, e há perguntas que fazes que eu tento responder, sempre de forma séria, porque me mereces respeito, mas principalmente porque isso falta à geração que encabeças.
Este ano, o engenheiro Guterres foi nomeado Secretário-Geral da ONU. 
Este ano, estão 30 graus em outubro, e tu vives uma experiência académica nova. A tua professora de português do 5º ano foi a minha professora de inglês do 5º ano. A primeira avaliação que tiveste foi dela: a apresentação oral de um livro que leste, gostaste e recomendas. Surpreendeste, porque és capaz do melhor quando te apaixonas. Excelente. 
A semana passada limpaste uma lágrima quando soubeste que alguém te considera a sua melhor amiga. 
Ontem à noite disseste que me adoras, como o fazes tantas vezes. E eu não esqueço nenhuma.

E as memórias não param, mas aqui ficarão para sempre.

Continua...

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

História de uma bota esquecida

Nasci num grande armazém, felizmente num país de grande tradição na indústria do calçado e, por isso, fui muito bem feita. Aos acabamentos foi dado o mesmo nível de atenção e cuidado do que à base e esqueleto, por assim dizer. Sou feita da melhor pele, com as melhores colas e tenho a sorte de ser cosida em grande parte do meu corpo, o que me dá uma segurança enorme.
Quando fiquei, finalmente, pronta encontrei o amor da minha vida, ou, por outras palavras, o meu par. Era belíssimo, um espelho perfeito de mim de todos os pontos de vista e perspetivas. Não havia par melhor no mundo: felizes, abraçado em concha, iniciámos a vida numa caixa devidamente forrada muito confortável. Como se quer, passamos os primeiros dias da nossa existência assim, protegidos do mundo num sono ligeiramente embalado. 
Não foi de admirar que nos tenham escolhido, chegados que éramos à loja, para habitarmos a montra mais bem decorada de todo o centro comercial. A etiqueta que nos apresentava refletia e anunciava, sem sombra de dúvidas, toda a nossa qualidade. Ali estivemos talvez umas duas semanas, exibindo costuras e recortes. Até o dia em que as conversas se centraram em nós. Havia só um, éramos par único. 
Mantivemo-nos unidos até na hora de nos experimentarem: o par ficava-lhe mesmo bem. E os sorrisos que vinham lá de cima eram mesmo o reflexo de toda a nossa beleza. Fomos comprados! E viajámos. Voltámos à caixa apenas por breves instantes, pois, nessa noite, começou o nosso trabalho. Nos pés dela éramos a estrela da noite. 
Porém, parece verdade que os maiores têm sempre os piores destinos e o meu não poderia ser pior. A festa prolongou-se até tarde. Penso que havia até já alguns raios de luz quando voltámos ao carro, desejando já o descanso merecido. Tinha sido uma noite gloriosa - até ali -, tínhamos sido centro das atenções e alvo dos maiores e melhores elogios. E ainda bem, porque seriam os únicos e finais. Repousámos um pouco no carro, ainda nos pés, e havia sono e cansaço à mistura. 
Foi então que do iminente sono fomos levados para o tumulto geral e incompreensível. Umas luzes demasiado próximas, sons agudos e sons mais graves, o metal a ceder, e a tontura da queda. Um acidente: um tumulto final. A ambulância e o choro, a rapidez na urgência das ações e o fim.
Largada na beira da estrada: uma valeta central sem hipótese de salvamento. Arrancada até do amor da minha vida que, na confusão, saltou o separador central e aterrou, abandonado, na faixa contrária.
Aqui estou desde então, uns seis meses terão talvez passado: não vivo nem corro. Exibo-me sozinha a todas as horas do dia, perdida sem saber o que me acontecerá. Nada. O vazio, a solidão, a inutilidade. Apenas uma bota na berma da estrada.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Sobre a hombridade...

Ainda que este título me faça, desde logo, perder uma série de leitores, arrisco usá-lo pela extrema importância de que se reveste. A hombridade enquanto sinónimo da nobreza de carácter é uma qualidade que se torna cada vez mais urgente nas sociedades atuais.
Sabendo, à partida, que a falta de hombridade não será, com toda a certeza, um problema exclusivo dos nossos dias, parece-me que vai falhando mais onde é mais necessária. Embora o pensamento utópico me seja particularmente caro, aspirar a uma sociedade coberta de hombridade não é, nem de longe nem de perto, um objetivo a atingir, pelo menos em termos absolutos. Contudo, mais uma vez, fico a pensar que cada um se deveria preocupar um pouco mais com o seu papel na sociedade e deixar as desculpas que nos motivam a falhar para trás das costas.
A verdade é que os cargos com mais visibilidade na sociedade, onde necessariamente me incluo, têm algumas responsabilidades acrescidas quanto ao exemplo que dão aos outros. São exemplo todas as profissões que lidem com públicos consideráveis, onde destaco, claro está, os políticos, mas também os médicos, os artistas e os profissionais da comunicação social.
A hombridade pode ser ensinada, principalmente pelo exemplo. E o mesmo acontece, ainda com mais vigor, com o seu oposto. E esse é, por isso mesmo, um dos grandes problemas dos nossos tempos, onde tudo - bom e mau - é muito mais visível. É difícil operacionalizar boas práticas e exemplos, quando somos constantemente confrontados com as vantagens (moralmente duvidosas) do seu contrário. 
A nobreza de carácter, como tantas outras qualidades importantes do ser humano, está em crise, mas não desapareceu. Existe, deve ser promovida e praticada sem sentirmos que, de algum modo, nos estamos a tornar em lorpas. Não esquecendo, todavia, que a hombridade engloba a possibilidade de falhar, de cair, de aprender com os erros, mas acima de tudo, a capacidade de caminhar de cabeça erguida.
Hoje, apeteceu-me pensar nisto.