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terça-feira, 22 de março de 2016

Rotinas (quebradas)

Cresci tranquila, num mundo onde desejar a paz no mundo parecia quase uma anedota própria de meninas loiras e que pouco ou nada entendiam do que desejavam (sortudas!). Nasci e cresci num mundo tendencialmente solidário e consciente. Cresci sem entender verdadeiramente o papel dos militares num país como o nosso. Vivi a Europa como espaço de partilha e de aprendizagens. Sentei-me nas escadarias da National Gallery só para ler um livro ao sol. Fiz amigos de todas as nacionalidades; vivi com católicos, muçulmanos, hindus e testemunhas de jeová e eram apenas colegas lá de casa. Tornei-me mulher sem ter medo de o ser. A guerra, ainda que transmitida em direto, estava tão longe. Que sorte tive em ter crescido num mundo assim.
Contudo, estudei utopias que me mostraram como é perigoso esquecer que o mal existe, sublinhando a importância de ciclos reavivadores de memórias e sentidos. Aprendi a dar valor a todas as coisas boas, porque cedo algumas das melhores coisas da minha vida tiveram que ir embora. Nunca dei nada como garantido na minha vida. Exceto talvez a paz.
Agora, proíbo-me de verbalizar aquilo que sinto. O que verdadeiramente sinto não pode ser audível, pois expressá-lo seria dar-lhes a vitória. Posso ter crescido em paz, mas sei arregaçar as mangas para lutar. E lutar, para mim, é saber amar.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Sou crescida!

Talvez por estar ligada aos adolescentes no meu dia-a-dia, dá-me sempre a sensação de que os meus anos de teenager não estão assim tão distantes de mim. Quer dizer, eu não me sinto uma jovenzinha inconsequente - longe disso -, mas parece que ainda fico surpreendida por algumas características da minha vida adulta. Isto é, às vezes estou a fazer alguma coisa e penso "Sou mesmo adulta, isto é coisa de gente crescida e eu estou a fazê-lo." 
Talvez pareça ridículo ainda pensar assim, principalmente por já ter uma filha com 10 anos e já ter passado por um divórcio, mas confesso que é verdade: ainda fico surpreendida por estar a fazer coisas de adulta. 
Ao contrário do que muitas pessoas poderão estar a pensar, é entusiasmo que acompanha esses meus pensamentos. Quando era miúda, queria muito estudar e andar para frente para poder construir a minha vida. Nem tudo correu sempre bem, mas tenho atingido os meus objetivos. Adoro ser adulta e fazer coisas de adulta. Podendo escolher, como às vezes fantasiamos, eu gostava de ficar para sempre adulta e não criança ou jovem, como outros desejam.
Hoje sinto-me crescida! O olhar para trás e ver que este papel parece coisa recente significa que, apesar de tudo, todas as minhas atitudes e rotinas de adulta me fascinam e entusiasmam como se as tivesse adquirido há pouco tempo.
E adultos desse lado, também se sentem assim?

sexta-feira, 11 de março de 2016

Uma questão de peso ou de falta dele

- Foi à minha escola uma escritora, mamã.
- Que bom! Gostaste?
- Sim. Ela falou sobre as histórias que escreve e disse que alguns dos meninos das suas aventuras são meninos de cor.
- Ai sim? De cor?
- Sim.
- De que cor?

A esta pergunta, a resposta foi apenas um olhar. Como se pela primeira vez se apercebesse do que tinha acabado de dizer. 
Há, de facto, cicatrizes que demoram a passar. A humanidade tem aberto inúmeras feridas que são, depois, difíceis de curar. Não são assuntos leves e as palavras podem ser apenas palavras ou podem ser tudo. Depende do peso que levam consigo. 
Eu escolho tirar-lhes o peso: às vezes e apenas simbolicamente.
Eu sou branca (até de mais para o meu gosto). Tenho amigos pretos. Ou melhor, são castanhos. Mas eu também não sou bem branca: sou meia rosa misturada também com amarelo... É uma cor esquisita, para dizer a verdade. A minha base de maquilhagem é bege (diz na embalagem), mas eu vejo castanho.
Tenho amigos ainda mais claros do que eu, e outros bem mais escuros. Alguns são tão corados que só lhes posso chamar vermelhos (e não é daqueles que têm mau gosto desportivo). Outros amigos são mulatos - os giros: nunca vi mulato feio! Diz no dicionário que são de pai branco e mãe negra ou vice versa.
Na verdade, segundo uma decisão da ONU logo após a II Guerra Mundial, deveríamos era falar de grupos étnicos e não de raças ou de cores. Pois... Há nomes para todos os grupos étnicos? Há um número fechado de grupos étnicos no mundo?
A mim pouco me importa. Se preciso de caracterizar alguém com algum traço distintivo posso usar muito bem a cor da sua pele e dizer um preto; ou a cor do seu cabelo e dizer um ruivo; e por aí fora. Posso, não posso? Ou é falta de educação e deveria dizer negro? Africano de certeza que não! Tenho um lá em casa que ainda é mais branco do que eu!
Posto isto, vou continuar a dizer preto, porque o digo sem peso. Mas sei bem que ainda há pesos de que temos de nos libertar. E é por isso, por exemplo, que o dia da mulher ainda faz sentido, e muito. Basta ler o jornal.

terça-feira, 8 de março de 2016

Ensaio sobre o Medo

Estavam de mãos dadas, agarrados como se a vida dependesse daquele aperto e caminhavam na segurança vã dos apaixonados. Ele era alto e, embora franzino, transmitia-lhe a tranquilidade de que ela necessitava. Fingia-se frágil para ele parecer maior, escondia-se na delicadeza estudada que ele achava adorável.
Naquela noite, entraram no apartamento procurando o refúgio para o amor que os consumia, faltavam quinze minutos para a meia-noite, faltava muito menos para a urgência dos corpos. No gritinho abafado que ela soltou ao toque viril da mão dele na sua coxa nua, não notaram o barulho metálico do trancar da porta.
O bater forte de uma porta no corredor, contudo, foi impossível de ignorar e colocou em pausa os corpos já enrolados em cabelos e suor. O bater dos corações tornou-se ainda mais forte ao ouvirem passos pesados atravessarem as divisões contíguas ao quarto. A mão dela procurou a dele e puxou-o com força para fora da cama; quebrou-lhe a apatia com um safanão mais forte e esconderam-se debaixo do colchão, donde pendiam lençóis brancos feitos escudos.
No instante em que recolhiam ainda as pernas na trincheira improvisada, a porta sofre um golpe duro que a atira contra a parede numa violência ruidosa. Enrijeceram os corpos, um contra o outro, ainda nus, revelando a fragilidade real dos dois. Sentiram o vibrar do solo a cada passo adivinhado da criatura que se aproximava. O lençol não os deixava ver a fonte dos sons, mas acompanhavam as vibrações que lhe denunciavam o percurso e, ao sentirem que se dirigia à casa de banho, ela sussurrou-lhe ”Vamos!”
Agarrou no lençol que cobriu os seus corpos nus e esvoaçaram para fora do quarto, quais fantasmas em busca desorientada pela paz eterna. Ela lançou a mão à porta de entrada, agora de saída, que se oferecia resistente e pelo olhar ele entendeu que a devia ajudar, mas de nada valeram os golpes masculinos perante a firmeza da porta trancada.
Os barulhos do arremesso de objetos continuavam e eram agora acompanhados por uns grunhidos graves e roucos. Quando ela ajustava o lençol para os tapar melhor na fuga, avistou o sexo dele, que há muito abandonara a ereção, e estava agora recolhido e tão mirrado que quase lhe provocara riso, não precisasse ela de se concentrar no plano que inventava. Empurrou-o na direção oposta dos ruídos que se aproximavam e, ao olharem para trás, conseguiram apenas ver uma sombra imensa.
Entraram numa pequena despensa e trancaram-se lá dentro, aninhando os corpos em terror. Os passos aproximavam-se e eles escorriam suor numa lubrificação agora inútil; ela sentia-lhe o bater forte das pulsações e quando a maçaneta da porta estremeceu, ele pegou-lhe no corpo pequeno e ajustou-o na frente do dele. Encurralados e sem tempo para pensar, viram a porta entreabrir-se.
Foi então que, sem ela adivinhar, ele pegou nela numa força descoberta, atirou-a para fora da despensa de encontro à fonte de terror e, esperando a liberdade pela oferenda que fazia, gritou:
- Desculpa, tenho medo!