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sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Coisa rara


Coisa rara: o dia estava mesmo a correr bem – chegara a tempo para o almoço com a melhor amiga –, mesmo depois de ter interrompido a marcha rápida para ver uma gaivota tão gulosa como ela própria. Parara a meio do caminho para a observar – branca, cinzenta e sempre alerta –, admirou-a e só depois seguiu para o carro estacionado mesmo ali à frente – o que também era coisa rara. Assim, não havia dúvidas: o saldo estava extremamente positivo neste dia – pelo menos nesta primeira parte do dia... Depois da sobremesa – gelado de nata com cobertura de caramelo –, deram um pequeno passeio pelo parque, onde puderam pôr as conversas realmente importantes em dia. Os temas eram claramente inadiáveis – assuntos de urgência, digamos, feminina; questões de brilho ou opacidade – também o poderíamos dizer assim. O cabelo da Rosa estava a ficar mortiço, sem vida, como que a precisar de um sopro de juventude. Maria, por sua vez, tinha encontrado a fórmula ideal para o rejuvenescimento capilar: mel, azeite e apenas umas gotinhas de sumo de limão – verdadeiro! E durante a partilha absolutamente fundamental e imprescindível, eis que uma gaivota, sobrevoando o parque que dava mesmo de frente para a linha de mar, alivia um elixir muito pouco milagroso que aterra, certeiro e impiedosamente, nos cabelos mortiços e baços de Rosa e nos esplendorosamente nutridos de Maria. 

(Receitas e acontecimentos ficcionados!)

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Memórias - Erasmus

Eu tinha 20 anos. Estava em Londres, longe do meu ninho, cheia de garra e valentia, mas intimidada com a minha própria coragem. Lembro-me de olhar o mapa várias vezes e analisar cuidadosamente a distância a que estava de casa. Embora o meu lar já não fosse o dos pais - tinha voado um pouco -, ainda assim havia uma ausência que não se podia apagar tão depressa como antes. Era jovem, sei agora que era, realmente, muito jovem. Havia tanto para aprender, para conhecer, para experimentar: é isso a juventude - o início de todas as experiências adultas.
Tinha conseguido alugar um quarto, num bairro no norte de Londres, e toda a casa e suas características me pareciam extremamente estrangeiras. Não podíamos andar calçados lá dentro, havia uma chave para ativar a eletricidade, não existia bidé na casa de banho... Um grill estava no lugar do exaustor e deste, inexistente, não senti falta. A cama tinha uma cabeceira amovível e a claridade escondia-se com uma cortina, apenas. Sem persiana, a janela parecia-me sempre aberta! Era apenas uma casa, contudo, havia que reaprender a conhecer uma casa. 
Em nenhum momento me senti arrependida e as diferenças excitavam-me os sentidos. Na primeira noite, ao passar Picadilly Circus, pensei que estava num filme, ou talvez num noticiário do canal 1 (como dizíamos então). Belisquei-me para acreditar que estava ali, a olhar os sinais luminosos todos, e onde encontrei o meu primeiro obstáculo linguístico. Por pouco interessante que possa parecer, ele foi o vinagre. O grupo pedia batatas fritas num cone de papel (tal qual as nossas castanhas!) e queriam saber se eu queria vinegar. Vinegar?? Com a pronúncia londrino-asiática dos meus companheiros, vinegar tornou-se a palavra mais impercetível do mundo - até o ter cheirado e respondido: "Sim! Quer dizer, yes, please!! Vinegar, I love vinegar!" Embora vinagre nas batatas fritas fosse, para mim, uma estreia. 
(continua)

sábado, 21 de novembro de 2015

Família

Não sei se sou de direita, não sei se sou de esquerda - e encontrar esta resposta é algo que não me preocupa mesmo nada. Contudo, conheço-me bem e sei em que acredito. Acredito na honestidade e acima de tudo no amor. Acredito em olhar para o lado e tentar sempre fazer o que é correto. 

Fico feliz pelas alterações que se fizeram ontem à sociedade portuguesa. Tentei até ler as vozes discordantes, mas não consegui (digo-o com toda a honestidade) compreender os seus motivos. Para mim, é um passo tão óbvio que só estranho - e lamento - a demora.

Acreditem no amor, não desconfiem dele. Como a minha mãe me disse tantas vezes: o amor é sempre bonito, tenha a forma que tiver, sendo verdadeiro, é sempre bonito. 

Isto é fazer o que está certo.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O autocarro (fim)

José apoiou as mãos nos joelhos e tentou recuperar o fôlego, enquanto pensava como com uma T-shirt estaria bem mais confortável. Ainda com a respiração acelerada, levantou o olhar e confirmou que o autocarro parara. Havia uma agitação lá ao fundo que não conseguia entender e, por isso, aproximou-se.
Carlos foi o primeiro colega que conseguiu identificar no exterior. Limpava as mãos a algo enquanto conversava com alguém. O carro que tinha apitado ainda há pouco arrancava a toda a velocidade. 
Outros colegas estavam ainda a sair do autocarro, e havia um burburinho constante mas pouco sonoro. José chegou finalmente perto deles: o seu olhar fazia todas as perguntas que não precisavam de verbalizações. Rita, a delegada da turma dele, aproximou-se e explicou.
Ao fim da tarde, ao chegar a casa, embora começasse já a agradecer a quentura da sweat, disse à mãe:
- Amanhã, levo uma t-shirt!
- Boa tarde! - replicou a mãe, colocando em evidência a indelicadeza do filho.
- Desculpa, mãe. Olá! Mas amanhã levo mesmo uma T-shirt!
- Então? Tiveste muito calor? Olha que agora ao fim do dia já sabe bem uma camisola mais quentinha. Não quero que fiques doente.
- Melhor doente do que com a cabeça rachada!
- O quê?!
Lucas vinha dentro do autocarro, nas últimas filas. Estava muito sol, o calor triplicava lá dentro. Farto de se sentir desconfortável, levantou-se e começou a tirar a camisola quente que trazia vestida, mas enquanto a fazia passar pela cabeça, um movimento do autocarro provocou-lhe desequilíbrio. Caiu para o corredor do autocarro, bateu com a cabeça no banco do lado de lá, raspou o peito descoberto contra o repouso de braços, muito danificado, do seu banco. Havia sangue a escorrer pela barriga, sangue a jorrar pelo nariz, um lanho visivelmente profundo no rosto. Carlos correu a levantá-lo, num movimento automático. As raparigas gritavam, pedindo socorro e o motorista, que se preparava para os deixar na paragem da escola, olhou pelo retrovisor e acelerou com um novo destino: hospital.
- Então por que parou no fim da avenida? - perguntou a mãe, já arrependida de ter guardado as T-shirts no armário mais alto do sótão.
- A Maria estava ao telefone com a mãe, que seguia no carro, uns metros atrás do autocarro. Em direto foi ouvindo a descrição. Contou-a ao marido que estava a conduzir. Apitaram para que o autocarro parasse. Pegaram no Lucas e levaram-no para o hospital.
- Ele está bem?
- Ainda internado em observações, por causa da pancada na cabeça. Mas parece que sim.
- E a tua mochila? Que aconteceu?
- Quando eu ia a correr e me livrei do peso dela, aterrou no lago da avenida... 

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

O autocarro (parte 1)

Estava um excelente exemplo do que é o verão de S. Martinho. Na verdade, ele não queria sentir aquele calor todo; afinal, a mãe já lhe tinha arrumado as T-shirts todas de manga curta e a sweat mais fina que tinha escolhido para hoje, era, ainda assim, muito quente. 
- Eu bem disse à mãe que ainda era cedo para fazer a troca das roupas, mas não adiantou nada. Agora estou aqui a morrer de calor.
Na paragem do autocarro sempre estava mais fresquinho: a sombra portegia-o do sol e a brisa que passava dava para aliviar um pouco a temperatura. Deixou-se ficar ali. Os colegas de turma acabariam por chegar no autocarro das 14h e só depois seguiriam para as aulas da tarde.
Morar perto da escola tinha as suas vantagens, embora os relatos das viagens de autocarro pelos colegas o fizessem desejar, secretamente, morar um pouco mais longe. 
Estava quase na hora; sentia-se, finalmente, mais fresquinho. Ao longe, viu aproximar-se o autocarro: levantou-se, adotou uma postura que lhe desse um ar mais cool - encostando-se displicentemente contra a lateral da paragem, com a mochila pendurada num ombro só -, verificou que o cap estava bem posicionado (ligeiramente desencaixado da cabeça) e cravou o olhar no autocarro que pararia dentro de uns segundos. 
O veículo, de facto, abrandou; as cabeças lá dentro começaram a tornar-se rostos conhecidos, mas não parou. José viu alguns dos amigos, mas em vez de lhe corresponderem o sorriso, mostraram expressões que ele não conseguiu, no primeiro segundo, decifrar - não o cumprimentaram, tinham os olhos esbugalhados, e enquanto uns passavam as mãos pelo cabelo, outros tapavam os olhos com as mãos. Percebendo que o autocarro não parava, José abandonou a pose ensaiada e caminhou em direção ao autocarro - na traseira estava Carlos, seu colega de turma, com as mãos ensaguentadas escorregando pelo vidro. 
Nesse instante, o autocarro acelerou.
- Sangue? Aquilo era sangue? Não parou?
As perguntas acompanhavam o movimento de um lado para o outro do pescoço. Procurava alguém, mas não havia vivalma àquela hora na rua. Estava sozinho e não podia ficar ali parado. Começou a correr, e o calor estava cada vez mais insuportável. As gotas de suor turvavam-lhe a visão, mas na avenida deserta ainda conseguia ver o autocarro. Atirou a mochila para o passeio e tentou apressar a corrida. A sweat era quente de mais. Arfava e limpava o suor das sobrancelhas. Estava a perdê-lo de vista e começou a chorar.
Um carro ultrapassou-o. Apitou veementemente. O autocarro parou.
(Continua)