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quarta-feira, 16 de setembro de 2015

A viagem (iii)


             Luísa achou piada à minha resposta e quis saber mais da minha história. Estava em Milão, infiltrada num grupo de pessoas que desconhecia, dirigia-me para Timor via Doha e Singapura e eles para o Sri Lanka via Doha e pensei Porque não?
            A professora de Educação Física, como se apresentou, encantou-se com os meus 25 anos repletos de esperança e alegria e com o meu relato. Foi fazendo as perguntas certas e teve de mim sinceridade por, de repente, sentir que talvez precisasse de uma segunda opinião. Acabei por lhe contar, com alguns detalhes, os últimos dois anos da minha vida - começando pelo acidente de mota.
         Assim que embarcámos, terminei de descrever os dois meses internada pelos múltiplos traumatismos que sofri. Depois de nos rirmos com as dores que partilhávamos com as alterações do tempo, ela passou a mão no meu rosto e enterneceu o olhar quando me disse:
            -         Ainda bem que não ficaram mazelas. É jovem. Tem a vida pela frente.
         Ouvi a frase ainda mais essa vez e, como das outras, pensei na vida que aí viria. Sentámo-nos lado a lado no avião e preparámo-nos para as 8 horas de viagem: tirei o casaco, descalcei as sapatilhas, agradeci a manta e as meias, tirei o livro da mala e arrumei-a por baixo do meu acento.
         Assim que iniciou a marcha de preparação para a descolagem, Luísa agarrou na minha mão e eu senti que ela suava ligeiramente.
Vai correr tudo bem! - e de repente pensei se estaria a falar com ela ou comigo mesma.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A varanda (iii)

Ana não queria acreditar no que ouvira: a ligação entre as suas cuecas e a T-shirt do moço parecia-lha completamente absurda. Olhou para Pedro, baixou o olhar ao peito dele, voltou a encará-lo, inspirou fundo e disse:
- De facto!
De facto?? De facto?? Enlouqueci, só pode!
O silêncio que se instalou foi especialmente apreciado pelo sr. Alberto que precisava de alguma concentração para descobrir como solucionar definitivamente o problema da velha e pesada persiana.
- Menina, isto não está bonito. - informou calmamente o proprietário. - Vou precisar de desmontar o caixilho superior, endireitar as calhas, substituir as lâminas danificadas...
Pedro, parecendo ainda procurar o tal som que pensava ouvir, sorriu.
- Precisa de mim, sr. Alberto?
- Não, obrigado. Mas isto só fica pronto ao fim da tarde, menina.
O suspiro de Ana acompanhou o baixar dos ombros. Estava o dia perdido, assim parecia.
- Não posso oferecer-lhe outro quarto, que estão todos ocupados, mas prometo que serei rápido. Antes do jantar isto fica prontinho. É só aproveitar bem a tarde. E é o que a menina podia fazer: aproveitar bem o dia bonito que está lá fora, dar um passeio, conhecer as redondezas. Sempre será melhor do que ficar aqui enfiada no meio dos papéis. - sugeriu, olhando a secretária.
Ana seguiu-lhe o olhar: encarou os papéis, pensou na manhã subaproveitada e na tarde completamente perdida. Aceitou-as. Inspirou ainda possuída pela loucura do "de facto".
- Pedro, não é? - perguntou ela, virando-se para o rapaz.
- Sim, sim. - respondeu como se confrontado por algum general.
- Muito bem, Pedro, parece que não vou trabalhar muito durante a tarde. Mas para já, julgo que já merecemos um almoço. Posso agradecer-lhe a ajuda, convidando-o para almoçar comigo?
E lá vinha o tal som, saído não sei de onde, baixinho, baixinho; e o aroma... Sorrindo apenas com o olhar, pousou a ferramenta que ainda segurava com vigor e sugeriu:
- No bar da praia, o prato do dia é peixe vermelho no forno!
As gargalhadas soltaram-se e, finalmente, a atmosfera cresceu, como se avançasse a varanda e se estendesse pelo campo de erva já pouco verde.
- Adequado! Vamos lá então.
Só o sr. Alberto, confundido com tanta risada, ficou sem perceber a piada do peixe vermelho.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Solidão

Um silêncio. Apenas isso: um silêncio.
Vontade de parar, apenas um pouco; como se viver pudesse ter vários andamentos e escolher agora viver devagar.
Parar na escuridão do silêncio. Apenas isso: a escuridão do silêncio.
Acreditar no silêncio, sem temer as palavras.
O silêncio da página em branco. Apenas isso: um silêncio branco.
Encontrar a verdade do silêncio.
Descobrir a solidão e amar.
E chorar.

A viagem (ii)


 Era dia 13, mas não era sexta-feira; escapara por um dia às previsões negativas dos supersticiosos.
  O voo foi calmo e breve, tempo apenas para um bife (ao pequeno almoço!) com ovos e um sumo de laranja. Aterrámos em Milão por volta das nove da manhã e foi fácil encontrar uma sala para fumar o primeiro cigarro do dia e apreciar o ambiente. Havia tempo para o próximo voo, mas muitos obstáculos para ultrapassar. Os passageiros e bagagens atropelavam-se nos corredores estreitos e antigos, os funcionários do aeroporto falavam alto, mais entre si do que com os viajantes, e gesticulavam para nós. Ganhei coragem e avancei para a multidão; dirigi-me a um posto, perguntando onde era o portão de embarque para Doha. Mostrei o meu bilhete e como resposta obtive:
- Mara! Bella ragazza, Mara! – completou com gestos que me apontaram numa determinada direção que segui sem mais questões. Desemboquei num grupo de conterrâneos que prontamente me ofereceu auxílio: o agente turístico deles trataria do meu check in. Tomei um capuccino e um cornetto – para não dizer croissant, já que não estava em França – e descobri que o grupo se dirigia para o Sri Lanka; a minha surpresa não foi maior do que a deles quando anunciei o meu destino: Timor.
-         Sozinha? - perguntou uma senhora com cerca de 50 anos, de sapatilhas e casaco polar, cabelo pelos ombros castanho e máquina fotográfica à cinta.
-         Sim. - sorri. - Há alguém que me espera lá. - descansei-a.
-         É preciso coragem. - comentou.
-         Ou muito amor. - completei.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Solo

É indiscutível a relação entre o ser humano e as artes; há qualquer coisa nas várias artes que não deixa os espíritos indiferentes, ainda que diferentes expressões tenham diversas receções e não se possa, por isso, estabelecer ligações de causa efeito exatas nestas matérias. É pena!
Ontem, ouvi, pela primeira vez, o recente álbum Solo do maestro e compositor Rui Massena. Não foi surpreendente a experiência, mas superou largamente as expectativas que já eram, por si só, bastante altas. O som do piano sempre me fascinou, mas nem todas as composições em piano me fascinam. Estas sim. Muito. Há, para mim, uma transmissão de paz que é avassaladora. Mas fico triste por, como referi, este efeito não se concretizar em todos os espíritos. Neste caso, seria admirável encontrar assim a paz no mundo - a desejar que seja em grande. Os líderes mundiais ouviam D-Day e as guerras terminavam, os povos ouviam Porque Não? e uniam-se em valores fraternos.
Aqui por perto, há umas vozes que se elevam em raiva, violência e desrespeito - eu não estava habituada -, e descobri que me deixam inquieta. O som da agressividade revolta-me, desassossega-me. É essencialmente triste. Achei que aumentar o volume do meu som (Solo) poderia contagiar de paz essas vozes. Não. Como disse: é pena!