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quinta-feira, 11 de maio de 2023

O vazio

 O vazio

Acordou e olhou para o teto branco: havia luz a entrar pela janela cuja persiana nunca era fechada. Era uma claridade desgastada que permitia um despertar mole. Ergueu-se para confirmar que o dia nascera e completou as rotinas habituais e muito pouco normais. Arrastou a porta e desceu as escadas sem se incomodar com os olhares dos vizinhos que encontrou; osseus passos carregavam o peso dos objetos sem os quais não podia sobreviver. 

Na rua, o mundo estava como sempre – indiferente às dificuldades de cada um – repleto de desperdício, de excesso, de pessoas que enchiam as ruas caminhando sem se aperceberem umas das outras. Ele passava por elas como uma brisa e observava cada detalhe, cada acessório que haviam escolhido para se enfeitarem ou para se munirem. 

Caminhava para destinos habituais com objetivos muito pouco normais, procurava talvez um motivo que o levasse a uma meta diferente, mas nada se sobrepunha à insensibilidade das horas. Nesse momento, este homem encontrou um brinquedo na rua: uma bola pequena, escura, gasta. Abandonada num canto; uma bola que terá fugido a quem com ela brincava, de quem se escondeu sem querer e ali ficou, só. Era uma bola como podia ser outro brinquedo qualquer, outra coisa banal, lixo para outros, mas não para ele. 

Chegou a casa com um novo tesouro, um resgate bem sucedido. Procurou o sítio certo para a bola e não havia qualquer dúvida – talvez alguma dificuldade em lá chegar (as divisões estavam esgotadas, quase inacessíveis, mas estranhamente organizadas). Era no quarto que havia sido dele, do filho que agora ali faltava, do filho que havia sido levado precisamente porque parecia não haver espaço para ele numa casa onde os objetos preenchiam outros vazios. Quando o espaço se encheu logo se criou o maior vazio de todos.


Adeus, Mickey

Finalmente as férias! Tantos planos, tantas saídas, tanta música, tanta praia, tantas miúdas. Ai as miúdas… e este tesão que parece não passar nunca. Os pais já tinham saído e ele acordou tarde, para se vingar dos dias de escola, espreguiçou-se, e resolveu o problema que o incomodava ali para baixo, sem ter de se preocupar com barulhos ou gemidos. Limpou-se à meia que estava perdida por ali e saiu da cama; foi impossível não parar em frente ao espelho no corredor, este corpo estava mesmo diferente: músculos mais definidos, ombros largos, rosto mais severo… estava bonito, foda-se. Este ia ser o verão. 

Na cozinha, abriu o armário e viu a sua velhinha caneca do Mickey. Retirou-a em automático mas depois olhou novamente para ela. Chega. Onde já se vira um rapaz giro como ele a tomar leite naquela caneca tão infantil

Colocou-a de lado para, mais tarde, dizer à mãe que não a queria mais, que a podia dar ou assim. Foi quando ouviu a campainha. Dirigiu-se à entrada e espreitou pelo buraco da porta: não viu nada. Devia ser alguma vizinha abriu a porta.

Nesse momento foi brutalmente empurrado por um movimento que o atirou para longe. Alguém entrava, tapava-lhe a boca por trás e, ao tentar defender-se, sentiu uma ponta afiada no pescoço. Acalmou a resistência e sentiu-se empurrado para a cozinha que ficava mesmo ali. Em encontrões ruidosos, viu-se encostado à banca. Tentou olhar para trás: só conseguiu ver a navalha. 

Não resistiu, mas quando sentiu as calças serem puxadas para baixo, olhou para o Mickey em desespero. Agarrou na caneca e arremessou-a para a cabeça do indivíduo que se encostava cada vez mais. Funcionou. A caneca partiu-se e o homem caiu inanimado no chão. 

Afinal havia uma última tarefa para o Mickey.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Os rios

 Ainda que me pareça estranho fazer parte de um grupo de pessoas (alargado) com um conjunto de características em comum - a autoestima sempre me levou a ideias de originalidade -, a verdade é que integrar um grupo (vários até) é inevitável, mesmo quando achamos que possuímos particularidades distintivas dos demais.

Passeando pelas páginas da literatura, é recorrente encontrarmos rios que atravessam as memórias de vários escritores; ora, também eu - mesmo não sendo escritora - me lembrei de que tenho um rio na minha infância.
Junto à casa do meus avós, passava um pequeno rio que nos mostrava, sem margem para dúvidas, a passagem do tempo - não metaforicamente - mas com elementos bem reais: lamas e correntes fortes no inverno, água transparente e tranquila no verão, perfumes de primavera e resíduos de outono.
Foi nas margens desse rio que aprendi a lavar roupa à mão, em lages cuidadosamente escolhidas para acomodar os joelhos (devidamente amortecidos por um pano) e a roupa que se tinha de esfregar. As lavadeiras eram várias e o trabalho era sério. Para mim, apenas uma brincadeira completamente diferente das que ocupavam os meus dias na cidade. Depois, estendia-se a roupa branca, ou outras com nódoas mais resistentes, ao sol a corar. Aprendi pouco, mas vivi muito. Lembro-me do cheiro do sabão rosa, do chilrear dos pássaros enquanto se esfregava, das conversas das senhoras da aldeia, da ternura da minha avó. Lembro-me das gargalhadas com que sempre terminavam estas tarefas: eu e o meu irmão acabávamos a mergulhar na água fria e, embora ali as águas fossem pouco profundas, sempre dava para nos divertirmos.
E assim passava uma parte dos nossos dias intermináveis das férias de verão. Hoje, o rio Tanha continua a passar debaixo da ponte no lugar da Ponte. Mas falta-me a minha avó a ensinar-me a lavar roupa no rio.

sábado, 15 de outubro de 2022

Zafón na Reboleira

Quando efetivei, ao fim de uns longos 17 anos de serviço, fui desterrada para Lisboa ou, como diz o meu pai, escolhida especificamente para lecionar na capital. Em vez das minhas habituais viagens solitárias a ouvir RFM, passei a usar os transportes públicos que, no meio de tanta coisa má, tinham uma gigantesca vantagem: ofereciam-me tempo para ler. Por dia, ganhei duas horas para me dedicar às páginas repletas de letras. 

Naquela semana, tinha decidido ler em espanhol (numa tentativa de profilaticamente combater o Alzheimer) El Juego del Angel. Como entrava sempre na primeira estação, tinha lugar para me sentar e, às 7 da manhã, ocupei o meu lugar à janela (com vista para as paredes dos túneis) e, à minha frente, sentou-se um senhor. Numa sincronia não prevista, sentamo-nos e retiramos da mochila um livro. O autor era o mesmo: Carlos Ruiz Zafón. Eu lia o volume 3, ele lia o volume 4 da tetralogia O Cemitério dos Livros Esquecidos. Trocamos sorrisos… e algumas palavras.

quinta-feira, 24 de março de 2022

A Escolha

 Texto de ficção baseado em factos reais.

Os meus padrinhos de batismo foram escolhidos pelos meus pais. Na altura, havia um diferendo entre eles: o meu pai achava que elementos da família seriam a melhor opção, a minha mãe achava que a família já teria um papel na minha vida e que, por isso, faria mais sentido escolher alguém com quem não tivéssemos relações de parentesco. Assim, foram aprofundando o debate, medindo prós e contras e referindo nomes de possíveis candidatos.

Eu era a primeira filha e, portanto, a escolha era importante e, como se via, difícil. Não faltavam palpites por parte também dos meus avós maternos e paternos, e argumentos a favor de uns ricos padrinhos ou de uns padrinhos ricos… mas a gravidez avançava a bom ritmo e era necessário tomar uma decisão. O facto é que, apesar de as mulheres terem normalmente uma voz mais forte nas questões relacionadas com os filhos, foi necessário negociar para chegarem a um consenso entre a vontade do meu pai e a da minha mãe. Ela decidiu então ir ao encontro da preferência dele – fazendo a escolha recair em elementos da família (embora mais ou menos afastados). Eram uns primos ricos, que moravam no Porto, com quem havia apenas interações esporádicas, talvez pelos Fiéis ou pela Páscoa.

Os primos tinham aceitado o convite e tudo corria como era de esperar: aquando do nascimento, festividades religiosas e aniversário da bebé, havia presentes e visitas e, da minha parte, os meus pais garantiam que eu cumpria a minha obrigação de afilhada, oferecendo o ramo à madrinha ou ligando de quando em vez a perguntar se estava tudo bem. Todos ficaram com a sensação de que a escolha tinha sido aceitável.

Entretanto, nasceu o meu irmão (um entretanto que foi de 13 meses apenas) e postos perante a mesma situação, os nossos pais tomaram, dessa vez, uma decisão que ia mais ao encontro das preferências da minha mãe do que do meu pai. Dois jovens irmãos, filhos de amigos da família (ou mais da minha mãe), assumiram o cargo com entusiasmo adolescente.

A vida encarregar-se-ia de mostrar qual dos dois progenitores tinha mais razão.

Tenho 45 anos e convivi com os meus padrinhos talvez durante pouco mais de meia dúzia de anos (os primeiros). Um dia, era eu talvez uma recém-adulta, quando encontrei a minha madrinha numa superfície comercial. Não me conheceu, claro, mas eu apresentei-me, mandei cumprimentos ao padrinho e trouxe para casa os dela para os meus pais. Foi a última vez que a vi. Passo, por vezes, em frente à casa deles no Porto e recordo as escassas vezes que subi aquelas escadarias ladeadas de heras e outras vegetações que me fascinavam em miúda.

O meu irmão tem 44 anos e o convívio com os padrinhos ocorreu principalmente durante os anos da infância. Passaram-se anos e anos em que não se viram, mas – graças às redes sociais – reencontraram-se virtualmente há uns anos e até hoje o contacto mantém-se através de reações que vão do like ao adoro, passando pela tristeza ou ira partilhada. Mas não faltam as felicitações por altura dos aniversários, que são – sei – sinceras de todas as partes.

                A minha preferência revela-se na escolha de padrinhos que fiz para a minha filha (matéria do próximo texto), cuja avaliação se tem revelado positiva.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Isolamento para professores

Os tempos que vivemos são diferentes, já o sabemos. Mas é assim mesmo a vida: um conjunto de acontecimentos que tentamos programar, mas que sempre têm a capacidade de nos surpreender. Como em todos os outros dias, penso no lado positivo de tudo: na felicidade de ter uma família - restrita e alargada - coesa e quente; no contentamento de ter amigos que - ainda que ao longe - são insubstituíveis e incríveis; na sorte de conseguir ter um lar com vista para a natureza, para o sol, para a água, para aquilo que nos oferece tranquilidade; na fortuna de possuir os conhecimentos e os meios para estar sempre a apertar os nós que me unem ao mundo - através dos livros, das tecnologias e, acima de tudo, dos amigos que tenho espalhados pelo mundo. Mas - e provavelmente num patamar superior - no privilégio de ser professora neste momento da história. Somos nós os elos imprescindíveis entre os nossos alunos e a realidade. Temos saudades deles e queremos conseguir prendê-los ao mundo. As semanas que se aproximam não são de descanso, como gostaríamos e precisamos até: são semanas de trabalho de planificação, programação e adaptação. Vamos conseguir! Quanto mais vejo, mais acredito. Queridos alunos, e respetivos pais, descansem... as escolas vão conseguir, os professores são capazes. Não vamos agradar a todos e vamos cometer erros, mas não estaremos de braços cruzados.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

O último teste

Está quase a tocar e eu tenho de estar muito concentrada para conseguir fazer o teste sem enganos, sem asneiras, organizado e certeiro. As férias estão quase a chegar e este é só mais um esforço para que tudo corra bem. Saturno, Júpiter, Neptuno. Latitude. Meridiano... Ai... Está tudo a misturar-se dentro de mim. As galáxias com as montanhas, os planetas com os rios. Chega! Vou desligar o cérebro e não penso mais nisto. Quando lá chegar logo se vê. Vou fazer como o Manel e divertir-me sem stress. Afinal, é só um teste. Só um teste... Só um teste!!!

Não foi assim tão mau. Afinal aquilo até estava escrito em português... É a minha língua! Que raio! Vou tirar boa nota, tenho a certeza. Claro que entretanto já queimei dois ou três neurónios com o nervoso enquanto o Manel continua divertido e animado. Um dia ainda hei-se saber ser assim. Claro que as notas dele não são como as minhas. Eu tiro sempre melhores notas... Mas, na verdade, isso interessa para quê? Fico mais rica? Mais esperta? Ou não... Se calhar sim. Quero acreditar que fico mais esperta e isso fará de mim mais rica um dia. E isso que importa? Andam sempre a dizer que o que interessa é ser feliz. Melhor nota a Geografia quer dizer que serei mais feliz?? Duvido... Cada vez que penso no Universo fico é mais confusa... e assustada! Uma bola suspensa à volta do Sol. E se caímos? Agarramo-nos onde? Aos meridianos ou aos trópicos?!

Acabou! Não penso mais nisso! O teste até já acabou e agora vou relaxar, espreitar o Luís do 9ºD a ver se ele hoje olha para mim e depois vou ao bar comer qualquer coisa. Lá está o Manel, sempre o primeiro da fila para comer. Isso é que ele é, sempre divertido e sempre de barriga cheia. Se calhar é esse o segredo. Vou lanchar a ver se me animo.

- Pára de me chatear, Maria! Não vou falar mais no teste. Estou a comer a minha nata e concentrada nas maravilhas que estas calorias vão fazer pela minha boa disposição! Já viste o Luís? Anda. Vamos lá ver se ele hoje olha para mim...

Está ali ao fundo... A falar com a Teresa! Aquela enjoada. Não percebo qual é a graça daquela miúda. Só porque tem o cabelo loiro acha que é muito bonita... Ou os outros é que acham, sei lá. Vou passar mesmo à frente. Se ele não olhar para mim, nunca mais penso nele! Prometo.
Estou quase. Ele está ali. Vou passar. Não vou olhar. A Teresa já está a ir embora. E...

- Filipa!

Ai... Estão a chamar por mim. Ele está a chamar por mim. É o Luís! Não acredito, é mesmo a voz dele.

- Filipa, correu bem o teste de Geografia?

Lá lhe respondi que sim e acabei a falar na porcaria do teste outra vez. Já não é mau: melhor isto do que ele nem ter olhado para mim. Agora é só pensar noutras estratégias e sei que vou ser feliz. Com testes ou sem testes.

E depois vi o Manel. Estava feliz, claro. Preparadíssimo para as férias. Com boas notas ou más notas. Para ele era igual.

Saímos todos a correr, o portão grande estava fechado e o Manel estava a tentar abri-lo. Mas não conseguia. Pudera! A empurrar pela parte mais próxima das dobradiças... “Ca” burro!

- Ó Manel! Aplicas menos força quanto mais longe empurrares da dobradiça. Básico! Aprendemos em Físico-química. Ora vê! - E o portão abriu-se rapidamente e sem esforço. O Manel, divertido, a olhar para mim. E o Luís, a passar por mim, impressionado.

E eu, na certeza de que estudar me faria mais feliz, fui de férias. Não pensei mais nos testes, mas pensei muito no Luís.