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sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Os rios

 Ainda que me pareça estranho fazer parte de um grupo de pessoas (alargado) com um conjunto de características em comum - a autoestima sempre me levou a ideias de originalidade -, a verdade é que integrar um grupo (vários até) é inevitável, mesmo quando achamos que possuímos particularidades distintivas dos demais.

Passeando pelas páginas da literatura, é recorrente encontrarmos rios que atravessam as memórias de vários escritores; ora, também eu - mesmo não sendo escritora - me lembrei de que tenho um rio na minha infância.
Junto à casa do meus avós, passava um pequeno rio que nos mostrava, sem margem para dúvidas, a passagem do tempo - não metaforicamente - mas com elementos bem reais: lamas e correntes fortes no inverno, água transparente e tranquila no verão, perfumes de primavera e resíduos de outono.
Foi nas margens desse rio que aprendi a lavar roupa à mão, em lages cuidadosamente escolhidas para acomodar os joelhos (devidamente amortecidos por um pano) e a roupa que se tinha de esfregar. As lavadeiras eram várias e o trabalho era sério. Para mim, apenas uma brincadeira completamente diferente das que ocupavam os meus dias na cidade. Depois, estendia-se a roupa branca, ou outras com nódoas mais resistentes, ao sol a corar. Aprendi pouco, mas vivi muito. Lembro-me do cheiro do sabão rosa, do chilrear dos pássaros enquanto se esfregava, das conversas das senhoras da aldeia, da ternura da minha avó. Lembro-me das gargalhadas com que sempre terminavam estas tarefas: eu e o meu irmão acabávamos a mergulhar na água fria e, embora ali as águas fossem pouco profundas, sempre dava para nos divertirmos.
E assim passava uma parte dos nossos dias intermináveis das férias de verão. Hoje, o rio Tanha continua a passar debaixo da ponte no lugar da Ponte. Mas falta-me a minha avó a ensinar-me a lavar roupa no rio.

sábado, 15 de outubro de 2022

Zafón na Reboleira

Quando efetivei, ao fim de uns longos 17 anos de serviço, fui desterrada para Lisboa ou, como diz o meu pai, escolhida especificamente para lecionar na capital. Em vez das minhas habituais viagens solitárias a ouvir RFM, passei a usar os transportes públicos que, no meio de tanta coisa má, tinham uma gigantesca vantagem: ofereciam-me tempo para ler. Por dia, ganhei duas horas para me dedicar às páginas repletas de letras. 

Naquela semana, tinha decidido ler em espanhol (numa tentativa de profilaticamente combater o Alzheimer) El Juego del Angel. Como entrava sempre na primeira estação, tinha lugar para me sentar e, às 7 da manhã, ocupei o meu lugar à janela (com vista para as paredes dos túneis) e, à minha frente, sentou-se um senhor. Numa sincronia não prevista, sentamo-nos e retiramos da mochila um livro. O autor era o mesmo: Carlos Ruiz Zafón. Eu lia o volume 3, ele lia o volume 4 da tetralogia O Cemitério dos Livros Esquecidos. Trocamos sorrisos… e algumas palavras.

quinta-feira, 24 de março de 2022

A Escolha

 Texto de ficção baseado em factos reais.

Os meus padrinhos de batismo foram escolhidos pelos meus pais. Na altura, havia um diferendo entre eles: o meu pai achava que elementos da família seriam a melhor opção, a minha mãe achava que a família já teria um papel na minha vida e que, por isso, faria mais sentido escolher alguém com quem não tivéssemos relações de parentesco. Assim, foram aprofundando o debate, medindo prós e contras e referindo nomes de possíveis candidatos.

Eu era a primeira filha e, portanto, a escolha era importante e, como se via, difícil. Não faltavam palpites por parte também dos meus avós maternos e paternos, e argumentos a favor de uns ricos padrinhos ou de uns padrinhos ricos… mas a gravidez avançava a bom ritmo e era necessário tomar uma decisão. O facto é que, apesar de as mulheres terem normalmente uma voz mais forte nas questões relacionadas com os filhos, foi necessário negociar para chegarem a um consenso entre a vontade do meu pai e a da minha mãe. Ela decidiu então ir ao encontro da preferência dele – fazendo a escolha recair em elementos da família (embora mais ou menos afastados). Eram uns primos ricos, que moravam no Porto, com quem havia apenas interações esporádicas, talvez pelos Fiéis ou pela Páscoa.

Os primos tinham aceitado o convite e tudo corria como era de esperar: aquando do nascimento, festividades religiosas e aniversário da bebé, havia presentes e visitas e, da minha parte, os meus pais garantiam que eu cumpria a minha obrigação de afilhada, oferecendo o ramo à madrinha ou ligando de quando em vez a perguntar se estava tudo bem. Todos ficaram com a sensação de que a escolha tinha sido aceitável.

Entretanto, nasceu o meu irmão (um entretanto que foi de 13 meses apenas) e postos perante a mesma situação, os nossos pais tomaram, dessa vez, uma decisão que ia mais ao encontro das preferências da minha mãe do que do meu pai. Dois jovens irmãos, filhos de amigos da família (ou mais da minha mãe), assumiram o cargo com entusiasmo adolescente.

A vida encarregar-se-ia de mostrar qual dos dois progenitores tinha mais razão.

Tenho 45 anos e convivi com os meus padrinhos talvez durante pouco mais de meia dúzia de anos (os primeiros). Um dia, era eu talvez uma recém-adulta, quando encontrei a minha madrinha numa superfície comercial. Não me conheceu, claro, mas eu apresentei-me, mandei cumprimentos ao padrinho e trouxe para casa os dela para os meus pais. Foi a última vez que a vi. Passo, por vezes, em frente à casa deles no Porto e recordo as escassas vezes que subi aquelas escadarias ladeadas de heras e outras vegetações que me fascinavam em miúda.

O meu irmão tem 44 anos e o convívio com os padrinhos ocorreu principalmente durante os anos da infância. Passaram-se anos e anos em que não se viram, mas – graças às redes sociais – reencontraram-se virtualmente há uns anos e até hoje o contacto mantém-se através de reações que vão do like ao adoro, passando pela tristeza ou ira partilhada. Mas não faltam as felicitações por altura dos aniversários, que são – sei – sinceras de todas as partes.

                A minha preferência revela-se na escolha de padrinhos que fiz para a minha filha (matéria do próximo texto), cuja avaliação se tem revelado positiva.