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quinta-feira, 30 de julho de 2015

A varanda (i)

Era uma manhã quente de Verão, já passava das 10 e ainda nem sequer tinha saído da cama. Levantou-se. Adivinhava a temperatura pelos raios que se escapavam através das falhas da velha persiana e Ana calculou-lhe o peso pelo tamanho enorme da varanda. Isto, antes do pequeno-almoço, não vai ser nada fácil. Inspirou e agarrou a fita que elevava uma persiana ainda mais pesada do que havia imaginado. Como recompensa, avistou um extenso campo de erva já pouco verde e, ao longe, ainda se conseguia ver o mar. Estava mesmo quente; ficou-se pela varanda a tentar sentir a brisa marítima, mas em vão. 
Depois de um duche curto, vestiu-se e desceu à receção, confirmando que perdera a hora da refeição. Na esplanada da porta ao lado, tomou uma meia de leite direta, comeu uma mariazinha com queijo e prendeu-se na vista da varanda do seu quarto na pensão. Cá de baixo lá para cima, via-se apenas o ondular da cortina e Ana pensou que talvez o quarto já estivesse mais fresco. Acho que agora já vou conseguir trabalhar. Era um dos seus habituais retiros para terminar mais um artigo para a revista da Faculdade. Sozinha, livre, sem horários e só com uma tarefa para cumprir, uma só, para variar. 
Como sempre, as palavras encontravam-se mais harmoniosas nestas fugas, porém o calor teimava em não deixar o quarto e, por isso, foi tirando a blusa e depois até os calções. Ficaram as havaianas a condizer com uma cueca reduzida: Olha se eu em casa poderia trabalhar assim!
Chegava finalmente uma brisa irresistível a cheirar a mar. Protegeu-se na cortina que lhe moldava o corpo e deixou a frescura tocar-lhe a pele pela primeira vez. Assegurando-se de que a rua estava deserta, expô-se premunidamente ao canto mais discreto da sacada. Hummm... Que bom! Apesar do meio do dia, o sol rodara para o lado de lá e não se via diretamente dali. Ouviu um ruído quase crepitante e teve a certeza de serem os seu ossos a receberem a frescura. Porém, era a velha fita a ceder e, sem tempos para remédios, Ana viu a persiana desfazer-se num desmoronar tão repentino como ruidoso. O som chamou a atenção dos que se recolhiam no interior do café ao lado da pensão: Ana e a varanda, uma persiana falecida em muralha constritiva - felizmente as havaianas condiziam com a cueca!

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Efemeridade

Já me tinham falado, mas eu nunca tinha visto: há uma flor que desabrocha pela manhã e murcha ao fim do dia. No dia seguinte, desapareceu. Não é um florzinha singela; é uma flor, com todas as letras, resplandescente de cor e formas e texturas e cheiro. Uma produção incrível para uma exibição pouco superior a 12 horas. É linda e, sem dúvida, corajosa.
Hoje fui, pela última vez, à minha escola. Entrei de nariz empinado, orgulhosa do trabalho que desenvolvi ao longo dos meses deste ano letivo. Caminhei calmamente, de cabeça erguida, passos lentos, suspiros suspensos; havia um cheiro a mar e as gaivotas ocupavam os lugares do costume. Cumprimentei com sorrisos invulgarmente pusilânimes e procurei que não me interrompessem a marcha. Abri o cacifo, recolhi os materiais, observei o espaço vazio e fechei a porta. Rodei a chave para a direita e prostrei-me talvez uns 3 segundos. Não consegui, porém, desencaixar o porta-chaves, muito menos retirar o cartão com o meu nome do mostrador. A chave ficou lá, suspensa e num ligeiro balançar; o meu nome também. Eu não.
Não faz mal: como a flor do dia, eu produzo-me toda para apenas um só ano letivo. Só assim vale a pena. Sei que murcho em agosto, mas isso não me tira o brilho, as cores, os sons, as texturas de todas as pétalas do meu corpo. 




Nota: Os acontecimentos são parcialmente ficcionados. Os sentimentos são todos reais.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Arrumações

É verdade que todos somos únicos. O que pensamos, decidimos, escolhemos, dizemos e fazemos são manifestações dessa singularidade. É impossível haver, no mundo, duas pessoas exatamente iguais: com os mesmos gostos, reações e ações, medos ou preferências. Cultivam-nos a importância da diferença, do livre arbítrio, da liberdade, da independência, ao mesmo tempo que nos empurram para a necessidade básica e inquestionável de pertencermos a um grupo, a um conjunto, de encaixarmos - até no sentido da Malhoa - em alguém. Eu devo confessar que adoro encaixar (em todos os sentidos), adoro pertencer a um grupo, ou melhor, a vários e ter a oportunidade - acho que é essa a razão fundamental - de partilhar. Partilhar a vida, porque nela está a minha singularidade, e porque a minha singularidade só existe pelo conhecimento do outro.
No meu caso, a partilha passa sempre pelas palavras: lidas, proferidas (tantas), ouvidas, cantadas (mal), inventadas, escritas. Andam por aí, em sons e ecrãs, em papéis e caderninhos, em blogs e redes sociais; espalhadas desarrumadamente por todo o lado - com nexo, sem nexo, com vida.
Agora, estarão todas aqui! Mentira! Apenas as escritas e mesmo assim apenas algumas. Atrevo-me a desejar que verterei para aqui só as mais bonitas (novas ou antigas, recentes ou repetidas). Porque a beleza é essencial, e a arrumação é sempre bela - para mim.